UM ENTRELAÇAMENTO ENTRE "MITO TAUTEGÓRICO" E A SEMIÓTICA DA "INTENTIO OPERIS" DE UMBERTO ECO (SOBRE A FILOSOFIA DA MITOLOGIA DE EUDORO DE SOUSA, PARTE I)

No transcurso do §21 ao §23 da obra Mitologia, história e mito (2004), o filósofo e mitólogo luso-brasileiro Eudoro de Sousa (1911-1987) defende uma interpretação tautegórica da mitologia, partindo contra a tradição alegorista, a saber, que irrefletidamente reduz o mito à mera "biografia de deuses". Com palavras tais, Eudoro de Sousa reivindica a concepção de mito tautegórico:

De início, digamos: não é fácil resistir ao pendor alegórico. Não há muito que se afirma, com suspeita veemência, que o mito não é alegoria, mas, sim, tautegoria (o primeiro foi Schelling; um século depois, Cassirer). E se insinuamos que a veemência desperta suspeitas é porque, na verdade, não incidiu ainda tão vigoroso acento no tautegorismo do mito, que para sempre ensurdecêssemos ao apelo do alegorismo. Ainda escutamos o apelo quando, respondendo a tácita ou expressa pergunta acerca do significado de um mito ou de algum de seus mais relevantes episódios, respondemos com a explicação que melhor nos pareça, em vez de repetir literalmente o relato, o que, evidentemente, deveríamos fazer, caso estivéssemos radicalmente persuadidos de que a tautegoria é propriedade inalienável do que quer que se haja por mítico. A não ser que repetindo o já escrevemos em outro contexto, a pergunta: "Que significa...?" se refira à significação que o mito confere, e não à que lhe é conferida [...] (DE SOUSA, 2004, p. 44 / §21).

Neste percurso inicial do §21, em virtude do aprofundamento de sua crítica à corriqueira perspectiva da mitologia como alegorismo, fábula ou "biografia de deuses", vide citação supracitada, Eudoro de Sousa põe-se numa sofisticada investigação filosófica sobre o conceito de mito tautegórico — consagrado por Schelling e Cassirer.

O conceito de "mito tautegórico" pode ser compreendido como certa capacidade inalienável das narrativas míticas de doar significação, independente do propósito de intérpretes usuais ou da ingênua redução alegorista do mito à biografia dos deuses. A saber, pressupondo um significado fundamental no âmago da expressão literal das narrativas, Eudoro avança o debate em prol da concepção de mito como tautegoria, numa contrapartida à visão do alegorismo, esclarecendo que sua concepção tautegórica do mito possibilitaria uma interpretação completamente nova ou renovada da mitologia. (idem, ibidem, p. 46 / § 23).

Em vista disto, visando a amplitude do domínio teórico da interpretação renovada da mitologia proposta por Eudoro, através do estudo comparativo entre o método de interpretação tautegórica da mitologia e a estratégia semiótica da intentio operis, meu objetivo será mostrar um ponto de convergência fundamental entre estas duas grandes teorias literárias. Em outras palavras, tentarei mostrar, portanto, que a estratégia semiótica da intentio operis de Umberto Eco pode ser usada como uma ferramenta útil ao desenvolvimento teórico (ou metodológico) da concepção de mito tautegórico.

Na obra Interpretação e Superinterpretação (2005), Umberto Eco defende que entre a intenção do autor e o propósito do intérprete de sua obra há também a "intentio operis" (ou intenção do texto). A intentio operis é uma espécie de referencial central do significado (e do propósito da interpretação) do texto. Nesta passagem — em defesa da intentio operis — Umberto Eco delineia como vislumbrar a sutil e autárquica característica da intenção do texto:

A intenção do texto não é revelada pela superfície textual. Ou, se for revelada, ela o é apenas no sentido da carta roubada. É preciso querer “vê-la”. Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitura por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto (ECO, 2005, p. 75).

Como argumenta Eco: toda interpretação limita-se em conjecturar sobre a intenção do texto. Contudo, é importante ressaltar que, naturalmente, a própria ação intencional de querer ver a intenção do texto é o que possibilitaria a revelação de tal intenção ao leitor. O que Umberto Eco chama de superinterpretação seria exatamente a revelação da intenção do texto na apreensão literal de seu significado. De modo análogo, aquilo que revela a expressão tautegórica do mito é também uma espécie de apreensão de seu querer dizer em interpretação literal, como Eudoro explica no seguimento do §21 ao criticar a superficialidade do alegorismo:

[...] Quanto a mim, estou convencido de que um mito confere significação e que nada existe que lha confira a ele. Admitamos, todavia, que em algum dos mais escusos recônditos do alegorismo se esconda pelo menos um germe de veracidade, isto é, que, de algum modo, o mito "quer dizer" o que efetivamente "não diz" e prestemos o melhor de nossa atenção ao "quer dizer". O mito "quer dizer", e só importa. Que diga ou não o que quer dizer, é uma alternativa que não se pode decidir levianamente. Mas, ao que diz o quer dizer. Por que não havia de dizer o que quer? A quase irremediável confusão só nasce com o desacordo dos intérpretes acerca do que o mito lhes diz, o que ainda não significa que o mito não diga o que quer dizer, mas tão-só que os intérpretes dizem acerca do que o mito lhes diz, o que ainda não significa que o mito não diga o que quis dizer. Contra mim mesmo falo: muitas vezes defendi a opinião que a exegese alegórica dos mitos foi um lamentável transvio. Não que hoje pense o contrário. Só pretendo descobrir uma acertada consequência do alegorismo. Entendemos a fórmula: o mito "quer dizer" e diz o que efetivamente diz. A exegese alegórica dos mitos gregos não se pode ter exercido totalmente em vão durante mais de dois mil e quinhentos anos: fenómenos telúricos e urânicos, sentimentos e emoções humanas, reações desesperadas dos indivíduos às irresistíveis pressões da coletividade, situações-limites, como o nascimento e a morte, as metamorfoses do homem, designadamente, a passagem da infância à puberdade — entre tudo isso, há dou-me por satisfeito com esta conclusão: assim encarado, o mito não é certamente "biografia dos deuses"; é só maneira de se falar do mundo e do homem (idem, ibidem, p. 44 / §21).

Quando Eudoro advoga, no §21, que mesmo na estrutura do alegorismo o mito "quer dizer...", isto não pode ser um sinal da presença da intentio operis em narrativas mítico-religiosas? Provavelmente. Mas só me parece irrefutável esta íntima ligação entre mito tautegórico e a semiótica da intentio operis quando Umberto Eco, ao citar um exemplo de intentio operis, narra um fragmento daquilo que, penso eu, concomitantemente pode ser identificado como um excerto ou uma cena de um mito tautegórico. Vejamos o que Umberto Eco propõe:

“Oh, Senhor, quando a alma está em êxtase, a única virtude consiste em ter o que se vê, a felicidade suprema é ter o que se tem.” Desse modo, a felicidade consiste em ter o que se tem, não em geral e em cada momento da vida, mas apenas no momento da visão extática. Este é um caso em que é desnecessário conhecer a intenção do autor empírico: a intenção do texto é patente e, se as palavras do inglês têm um significado convencional, o texto não diz o que o/a leitor/a - em obediência a algum impulso idiossincrático - acreditou ter lido. Entre a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor está a intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação insustentável (ECO, 2005, p. 92).

O símile surpreendente de Eco, como grandioso exemplo da expressão da intentio operis, dispõe-se duma forma linguística comum em narrativas mítico-religiosas. Como resultado, mais que uma ferramenta de superinterpretação de textos, a estratégia semiótica da intentio operis de Umberto Eco revela-se como um hábil recurso ao acento do tautegorismo do mito à renovada interpretação da mitologia idealizada por Eudoro de Sousa.

REFERÊNCIAS:

DE SOUSA, Eudoro. Mitologia, História e Mito. 1ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução Thelma M. Nóbrega. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.