Fundamentos da Literatura Comparada

À primeira vista, a expressão "literatura comparada" não causa problemas de interpretação. Usada no singular, mas geralmente compreendida no plural, ela designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas. No entanto, quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados como "estudos literários comparados", percebemos que essa denominação acaba por rotular investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela diversificação dos objetos de análise concedem à literatura comparada um vasto campo de atuação.

Além disso, a dificuldade de chegarmos a um consenso sobre a natureza da literatura comparada, seus objetivos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre o assunto, pois neles encontramos grande divergência de noções e de orientações metodológicas. Muitos fogem a essas questões. Outros dão conta das tendências tradicionalmente exploradas sem problematizá-las. Alguns tendem a uma conceituação mais genérica. E há ainda os que preferem restringir a determinados aspectos o alcance dos estudos literários comparados.

A literatura comparada examina a cultura e o contexto histórico-social de um texto e escritor, relacionando-o com outros escritores e setores, como a filosofia, o cinema, o teatro, etc. “São estudos ou ensaios sobre o que representam gêneros, autores e obras num determinado momento”. E o sentido da expressão "literatura comparada" complica-se ainda mais ao constatarmos que não existe apenas uma orientação a ser seguida, é adotado certo ecletismo metodológico. Em estudos mais recentes, vemos que o método (ou métodos) não antecede à análise, como algo previamente fabricado, mas dela decorre. Aos poucos se torna mais claro que literatura comparada não pode ser entendida apenas como sinônimo de "comparação". É uma questão complexa dada a diversidade de estudos. Enfim, é uma “torre de babel”.

Adentrar o terreno da Literatura Comparada é preparar-se para caminhar por trilhas diversas do pensamento humano. É desprezar fronteiras e penetrar em territórios diferentes e descobrir que o ‘’Outro’’ pode ser o ‘’Mesmo’’ ou que o ‘’Outro’’ pode ser ‘’Eumesmo’’,ou simplesmente o ‘’Outro’’; é valer-se da oportunidade de olhar longe para ver de perto como o Outro fala, do que o Outro fala, o que o Outro pensa, onde o Outro vive, como vive; é, enfim, estabelecer comparações–atitude normal do ser humano. O exercício do comparativismo ‘’colabora para o entendimento do Outro’’ (CARVALHAL: 1997:8).

Nesse processo, a literatura comparada garante sua participação nos mecanismos de integração cultural. Nesta instigante empreitada, várias podem ser as trilhas pelas quais o comparatista se aventura: pode optar pela via da tradução literária, pela via da estética da recepção, pela via da intertextualidade, pela via dos polissistemas literários, e outras mais. Resguardando o limite de espaço que nos coube para uma reflexão a respeito da algum aspecto ligado aos estudos de Literatura Comparada. Antes de tudo, esse não é um recurso exclusivo do comparativista. Por outro lado, a comparação não é um método específico, mas um procedimento mental que favorece a generalização ou a diferenciação. É um ato lógico-formal do pensar diferencial (processualmente indutivo) paralelo a uma atitude totalizadora (dedutiva).

Comparar é um procedimento que faz parte da estrutura do pensamento do homem e da organização da cultura. Por isso, valer-se da comparação é hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo na linguagem corrente, onde o exemplo dos provérbios ilustra a freqüência de emprego do recurso. Estas reflexões partem do pressuposto de que a formação da imagem própria depende de um espelhamento. Sem maiores digressões psicanalíticas, mesmo porque tal não e a seara deste trabalho, temos a intuição desse espelhamento, que o senso comum já resumiu em frases como “Tal pai, qual filho”, “Filho de peixe, peixinho é”.

A crítica literária, por exemplo, quando analisa uma obra muitas vezes é levada a estabelecer confrontos com outras obras de outros autores, para elucidar e fundamentar juízos de valor. Compara, então, não apenas com o objetivo de concluir sobre a natureza dos elementos confrontados, mas, principalmente, para saber se são iguais ou diferentes. É bem verdade que, na crítica literária, usa-se a comparação de forma ocasional. No entanto, quando a comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico, convertendo-se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de método – e começamos a pensar que tal investigação é um "estudo comparado".

Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe.

Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim. Mas, embora ela não seja exclusiva da literatura comparada, não podendo, então, por si só defini-la será seu emprego sistemático que irá caracterizar sua atuação. No entanto, ainda que já se esteja tentando abrir clareiras no emaranhado das definições, não convém adiantá-las. Espera-se que elas surjam naturalmente das considerações posteriores.

Embora empregada amplamente na Europa para estudos de ciências e lingüísticas, é na França que mais rapidamente a expressão "literatura comparada" se firmou. Ali o emprego do termo "literatura" para designar um conjunto de obras era aceito sem discussão desde o seu aparecimento, com essa acepção, no Dictionnaire philosophique de Voltaire, enquanto na Inglaterra e na Alemanha a palavra "literatura" custou mais a ganhar esse conceito.

Indiferente aos locais onde se expandiu, a literatura comparada preservou a denominação com que os franceses a divulgaram, mesmo sendo imprecisa e ambígua. Por isso, muitas vezes sofre a competição da expressão "literatura geral", também de uso corrente em francês e em inglês, com a qual é freqüentemente associada. Estão ambas, por exemplo, nas denominações de associações de comparativistas (veja-se a "Société Française de Littérature Générale et Comparée") ou de publicações especializadas, como Cahiers de Litterature Générale et Comparée, caracterizando uma atuação conjunta de estudiosos das duas disciplinas. A abordagem, nesse caso, refere-se à Literatura Geral e à Literatura Comparada. A distinção entre as duas expressões tem constituído ponto de discussão permanente.

Alguns autores consideram a literatura geral como um campo mais amplo, que abarcaria o dos estudos comparados. Outros como René Wellek e o francês Etiemble, não estabelecem diferença entre elas. À denominação "literatura geral" também é associada a de "literatura mundial", mais conhecida pelo termo Weltliteratur, cunhado por Goethe em 1827. Embora se tenha prestado a várias interpretações, esse termo foi utilizado por Goethe em oposição à expressão "literaturas nacionais", para ilustrar sua concepção de uma literatura de "fundo comum", composta pela totalidade das grandes obras, espécie de biblioteca de obras-primas. Mas, além desse significado, podemos entender ainda o termo, de acordo com o pensamento de Goethe, como a possibilidade de interação das literaturas entre si, corrigindo-se umas às outras.

O emprego da palavra por Goethe ganhou inúmeras interpretações, mas importa aqui acentuar que a aproximação entre as expressões "literatura comparada" e "literatura geral" deixa transparecer ainda o espírito cosmopolitismo literário que favoreceu o surgimento de ambas no século XIX. Estudando relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e obras, a literatura comparada não só admite, mas comprova que a literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas.

A literatura nasce da literatura; cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea (1990:94).

É nos primeiros decênios deste século que a Literatura Comparada ganha estatura de disciplina reconhecida, tornando-se objeto de ensino regular nas grandes universidades européias e norte-americanas e dotando-se de bibliografia específica e publicações especializadas.

Rafael de Sousa Rocha e Fernanda Zanon
Enviado por Rafael de Sousa Rocha em 23/11/2015
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