"FACES OPOSTAS" Monólogo de: Flávio Cavalcante

Monólogo

De:

Flávio Cavalcante

ROLL DOS PERSONAGENS

MARGARIDA

SINÓPSE

A nobreza que o teatro carrega é de primordial importância na vida, não só do ator, mas também, na vida de qualquer pessoa que queira crescer culturalmente. Para mim, o melhor exercício para ator, é quando o mesmo se dispõe a interpretar monólogos. Ao abrir as cortinas, o único personagem passa a ter uma responsabilidade de tamanha grandeza, por ele não ter nenhum sustentáculo para dividir a cena. O perigo de uma gafe anda lado a lado do ator, podendo levantá-lo ou destruí-lo ao mesmo tempo. A reação do público, dirá se o ator está dando conta do recado ou não, e se tiver, posso dizer com toda convicção, este ator, está preparado para qualquer outra atividade em se tratando das artes cênicas.

Nesta obra, rabisco a vida, a desilusão, a revolta, a briga com o eu anterior e a volta por cima. Narra a história de Margarida. Uma prostituta, perseguida pela sociedade e sua revolta e briga com seu eu interior, por se achar excluída de tudo e de todos. O segredo de um passado, pesado como uma cruz, que ela carrega em suas costas até o calvário, ainda está muito presente em sua vida, e a tormenta de uma forma horrenda, levando-a a momentos de delírios e muito prazer para o espectador.

É realmente um exercício para ator, diretor, e técnicos. Mas também se trata de um imenso troféu para o espectador que curte um bom espetáculo, este, especialmente, que para mim, é de primordial importância e merece todo o meu respeito e apreço, pois sem ele, não temos a satisfação através do seu aplauso. A companhia agradece a sua presença.

O autor

Cena escura, a sonoplastia libera uma música de tensão e rápida. Margarida está prostrada numa espécie de tapete. A ambientação se trata de um local meio indefinido para o espectador. Não se sabe se é um bar, se uma sala. Fica por conta da criação de cada um.

MARGARIDA

- Meu nome é nome de flor! Grande bosta! (Ri contida). Ter um nome tão bonito e um passado tão podre! Podre mesmo! Nojento a ponto de escarrar em cima do meu próprio nome! (Transição séria). Chega! (Com ironia). Margarida... (Quer ri mas se prende). A flor... (Solta uma gostosa gargalhada. Transição como quem está falando com alguém). Por que essa seriedade toda? Desse jeito você vai acabar me matando de tanto rir... (Ri sem conseguir parar). Pára de ficar me olhando desse jeito... (Outra gargalhada). Não faz isso comigo! Olha, que eu vou me molhar toda, hein! Minha bexiga já tá cheia! Se eu não parar de rir, vou fazer xixi na calcinha, hein?! (Transição). Pára... Eu não quero mais rir... Tá bom! Eu não vou olhar mais para você... (Tenta disfarçar, tentando se livrar do olhar, mas não agüenta e desmorona com outra gargalhada). Eu já mandei você parar com isso... Que coisa! Como é que posso parar de rir, se você não pára de me olhar?

- (Transição toma um gole de bebida). O que?! Mas é claro, que eu estou! Não, eu não estou bêbada! Eu estou trêbada... (Outra gargalhada. Transição séria). Não estou nem aí pra nada e pra ninguém... Eu quero mais é que se fôda o mundo... Eu sou prostituta assumida, sim... Desde quando você pode me proibir de ser o que eu quero ser? E quer saber de uma coisa?! A xereca é minha e eu dou a quem eu quiser... (Transição com raiva). Vá se foder você também! Ora, que merda... (Recua. Transição como quem se arrependeu. Volta fazendo beicinho como quem quer chorar). Desculpa, vai... Desculpa... (Transição arrependida). Meu Deus! O que eu estou fazendo!? Não posso descarregar minhas mágoas em cima dos outros por causa de uma porra de um copo de bebida... (Bate na boca). Margarida, sem palavras libidinosas, pelo amor de Deus... (Transição). Peço-lhe desculpas novamente... Eu não sou este monstro que estás pensando, entende? Eu posso não valer muita coisa pra sociedade! Mas a sociedade acha que eu valho alguma merreca, se eu andar em dia com minhas obrigações, claro... Eu pago meus impostos! Todos em dia! Pode olhar... Pode olhar... Estou em dia com a receita federal... Aliás, esta, sempre pegou no meu pé! Todo mundo pergunta... (Debochada). Por que?! Você não ganha dinheiro o suficiente para declarar imposto de renda de apartamento caro em Copacapana! Todo mundo fala do carro importado que me leva pra cima e pra baixo... (Consigo mesma). Não sabem eles que o presidente do tribunal de contas... (Pausa. Transição). É meu cliente! Sabe o que é isso? Isso se chama inveja... Podem me chamar de piranha! Fiquem à vontade... Até você pode me chamar do que você quiser... Agora, ser puta de rico, não é pra qualquer uma não...

- Vamos fazer uma coisa? Eu não quero mais nada com você! Aliás, nem sei o porquê estou lhe dando tanta trela, que a gente nunca teve nada mesmo! Nem trepar a gente nunca trepou! Trepou?! Se disser que trepou, eu vou lhe desmascarar na frente de toda esta sociedade hipócrita! Não tenho que lhe dar a mínima satisfação da minha vida nem a você e nem a ninguém, sabe? (Fica em pausa por alguns segundos).

- Pára de fazer tanta pergunta! Parece minha mãe... Chega! (Acende um cigarro). O que é? Vai falar agora porque eu acendi o meu cigarro? De tudo nessa vida eu já provei! Cigarro, maconha... Craque! Até injetáveis eu já experimentei! E olha que eu tenho horror a injeções... Minha vida se resumia a um poço de bosta! Depois que descobri a profissão de ser puta! Não quero mais outra vida! Abandonei todo tipo de droga da minha carreira! Hoje eu sou famosa na Cinelândia! Já domino a área! Quando chega uma putinha... Uma putinha... Marinheira de primeira viajem... Coitadinha... Não sabe o mico que muitas vezes tem pagar... É! Ser puta é mérito pra poucas! Tem que ter talento! Andar com cacete na cabeça desde a hora que nasce! Treinamento a toda prova! Ser dura! Até na hora da primeira eucaristia! Já imaginava o tamanho do pau do padre! (Ri contida). Falo sério! (Morde os lábios como que tivesse com tesão). Por trás daquela batina esconde tanta coisa! (Insinuando o tamanho do membro do padre). Como também pode não esconder nada! (Insinua o tamanho do membro do padre minúsculo). Sabe que uma vez, um padre... Foi um padre! Eu juro que foi! Quis sair comigo! Dá pra acreditar nisso? Padre sem vergonha! (Transição). Se eu fui? O que você acha? Um aprendiz de puta, novinha, cheirando a leite... Precisa dizer mais alguma coisa? Eu tive foi uma baita de um susto! Foi na eucaristia mesmo, logo após a novena, assim que as beatas deixaram a igreja! (O sino toca).

- (Envergonhada). Padre tira a mão das minhas entranhas... Não faz isso, que eu não vou agüentar! Filho da puta! E não é que é mão dele, não saía debaixo da minha saia? O pior era que eu tava adorando... Eu tirava a mão dele... Dizia... “Tira, padre”... “Tira, padre” Mas O meu instinto de fêmea insistia em me dizer... “Deixa, padre”... Nesse entra e sai... Meu olho foi virando... (Vai virando o olho). Foi virando... (Suspira de desejo). Eu suspirava que só uma cachorra louca! Babava! Me bate, padre! Dá uns gritinhos de prazer). Eu tava babando... Já pensou uma garota já prontinha pra receber a menstruação, puberdade à toda prova! Cio então... Ôhhh... Tá babando por causa da safadeza de um padre no cio?! (Ri como quem acordou do sonho). Ai... Pára, Margarida... Pára, que já tá me dando tesão de novo... E não é que me deu uma vontade!? (Transição como quem está falando com alguém). E você não pára de me olhar me repreendendo...

- (Com ar de choro). Não fala assim de mim! Não, não, nãoooo... (Tapa as orelhas). Eu juro que não vou ouvir... (Nervosamente). Não grita comigo, porra! Eu sou apenas uma prostituta, não uma assassina! O que há de mal nisso? Eu não matei, não roubei... É eu sei, você já falou e eu já tou cansada de ouvir! Eu tenho defeitos! Mas se olhe também diante de um espelho! Talvez você consiga enxergar defeitos maiores que os meus... Eu não valho nada! Aliás, você também não vale porra nenhuma! (Transição agressiva). Eu não sou importante! Como você também não é! (Vai à platéia). Dá pra cheirar minhas axilas? Tá vendo só? Ele não cheira, por que sabe, que pode sair daqui com o nariz ardendo com o mau cheiro vindo delas. Se concebe um ser humano ficar fedendo a macaco? (Com o espectador). Pode cheirar! Eu quero provar, que de importante a gente não tem nada! (Volta ao palco).

- Tá vendo só? E você ainda quer se achar grande coisa? Vê se te manca, oh meu!

- (Transição). Por que insiste em bater nessa mesma tecla? Eu não vou trepar com você! Nunca! Eu não te quero, dá pra entender? Me deixa em paz... Vai olhar se eu tou ali na esquina! Ora, vá pro inferno! (Pega o copo e toma mais um gole. A luz muda dando idéia de mudança de tempo. Margarida está prostrada como quem já tomou todas. Ao seu lado encontram-se algumas garrafas de bebida fina em sua volta. Todas vazias. Margarida olha em sua volta acompanhada de sonoplastia e ela começa a dar um giro de olhares para as garrafas e começa a partir daí, uma fase de alucinação revolta. A sonoplastia pára bruscamente com grito).

- Ai, minha cabeça como dói! (Abraça a cabeça com as mãos). Segredos! Quem não tem segredo nessa vida!? Porra! Por que todo mundo tem e eu sou a condenada, se nem eu mesma sei do meu próprio segredo? Nem meus botões sabem... (Transição). Não, eu não quero saber! Não me interessa! Não, eu não quero saber! (Transição como quem está falando com alguém). Não insista que eu não vou falar... (Começa a cantarolar uma canção para desviar a atenção da pessoa com quem a mesma se refere. Uma fotografia de uma criança bem meiga aparece em um telão).

- (Sofrendo). Minha filha! Minha filhinha! Quer passear com a mamãe? Eu só penso em você, meu amor! Ai, meu Deus! Não consigo me vir de frente com a minha filhinha. Eu guardo comigo as marcas do meu passado! Só por causa de minha filhinha! Só ela é que ainda me deixa calada... Se não, eu já tinha mandado todo mundo pra puta que pariu e o mundo se danar... (Transição aos gritos).

- Eu não vou falar... (Pega um copo e faz menção que vai jogar na platéia. Depois se arrepende). Eu devia quebrar este copo na sua cara! Mas pra que? Me custou uma mixaria e você não vale nem a metade dessa mixaria... (Transição). Olha, não me repreende que meto na tua cara mesmo!

- Eu quero que se dane! Você e essa sociedade hipócrita! Não vai botar a carinha na coluna social este fim de semana, não? Os colunistas estão loucos pra falar um monte de mentiras! Com certeza, eles vão lhe enaltecer! Vão lhe colocar num altar como estas aparições que estão em evidência... (Transição com ironia). Não é assim que você gosta de ser? Ou melhor... Ter um tratamento cheio de hipocrisia? (Debochada). Você é um idiota mesmo! Já parou pra pensar o quanto você paga para ter sua foto naquela página hipócrita? Não?! Tadinho... Ai, deles... Ai, deles, se não tivesse você pra pagar aquele monte de mentiras! Deixa pra lá...

- Eu não estou só com um macho! Quer saber quantos eu saio num dia? (Transição). Pegue uma calculadora, meu amor... Não, pode pegar uma calculadora! Aliás, prepare-se para fazer as contas... Oh... Fala sério... Eu tenho mais o que fazer, tá?

- (Abre uma garrafa de bebida. Transição recua). Não venha querer me impedir! Eu vou beber mais uma... Aliás, eu vou beber todas e mais algumas... (Joga a garrafa. Entra em desespero). Me dá... Eu quero a minha garrafa! Não adianta! Não é dessa forma, que você vai me obrigar a dizer o meu segredo... Me dá a garrafa... Deixa eu afogar as minhas mágoas num copo de bebida!

- (Chorando). Eu não vou falar... Não me pressiona... (Aos berros). Vai me embora... Me deixa! Eu já pedi pra não me gritar... (Gritando). Eu não estou gritando! Vai embora!

- Não vai embora não? (Puxa bruscamente uma cadeira pra o centro do palco). Então por favor... Pode sentar! Muito bem! Por que essa perseguição? O que você quer comigo? Por acaso tá querendo me vir louca?

- Não venha me chamar de louca que eu não sou... Não, eu não sou louca... (Suspira forte).

- Eu não vou falar... Não insista! Chega! Minha cabeça tá em tempo de explodir... (Chora). Não faz isso... Não faz...

- (Grita em prantos). Eu não posso falar... (Pranto). Minha filha não pode saber... Eu tenho que ser exemplo pra ela... Eu sou puta, mas trato bem minha filhinha...

- (Chora). Não faz isso comigo... Não... Não... Nãããoooo...

- (Em prantos em desabafo). Não... Se quer saber!? Não se trata dele, porra... (Pausa). Trata-se dela! Eu estou apaixonada por ela... Uma mulher! Eu sou lésbica! Porra, eu sou uma lésbica! (Chora descontroladamente. Pausa). O que vai fazer agora? Vai me matar por causa disso? Acha pouco o que eu tou passando com essa briga comigo mesma, por causa desse maldito segredo? (Pausa. Transição amena). Você é a única pessoa que sabe, além do meu eu... Não me condena! Por favor! (Faz menção que encosta a cabeça no ombro de alguém, demonstrando uma imensa carência afetiva). Eu não queria ser assim... Mas sou e se eu continuar a brigar comigo mesma vou deixar de viver! Eu tenho uma missão aqui na terra e preciso estar de bem comigo para atingir o topo da montanha... (Limpa os olhos e o nariz, levantando a cabeça). E é isso mesmo, que eu tenho que fazer... Eu acho que o que eu estava precisando era desabafar com alguém além de mim! (Vai se reanimando). A partir de hoje, não vou mais me trajar de prostituta pra dizer pra sociedade que eu curto mais homem! Eu não curto a parada mesmo! (Começa a se vestir normalmente. Se maquia no palco, fazendo um novo visual. O encara. Limpa os olhos). A partir de hoje, eu sou uma nova mulher! A face oposta à anterior... Basta encarar a vida como ela é! (Vai se animando). Viva as lésbicas sem problemas... (Começa a rir contida). Margarida! Viva as lésbicas... (Solta uma gostosa gargalhada de felicidade. A sonoplastia cobre a gargalhada. Entra uma música tipo New work e Margarida faz a coreografia. A luz vai diminuindo em resistência até ficar totalmente escuro. Chega o fim do espetáculo. “Faces Opostas”).

Autor: Flávio Cavalcante.

Obs: Todo trabalho desenvolvido por este autor é totalmente fruto da imaginação; porém, qualquer semelhança é mera coincidência.

Flavio Cavalcante
Enviado por Flavio Cavalcante em 01/12/2015
Reeditado em 01/12/2015
Código do texto: T5466196
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