Stephen King, o estranho

STEPHEN KING, O ESTRANHO
Miguel Carqueija


Resenha do romance “Carrie, a estranha”, de Stephen King. Editora Objetiva, Rio de Janeiro-RJ, 2002. Título original: “Carrie”, copyright 1974 de Stephen King. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. Capa: Silvana Mattievich.

Este primeiro livro de Stephen King foi logo filmado, ainda nos anos 70, e até onde me lembro era um filme de terror muito bom. Não posso dizer o mesmo do livro: King é um autor vulgar, da contra-cultura, sem a elegância de um Poe ou mesmo um Lovecraft. O mundo de Stephen King é um submundo de personagens drogados, sexólatras, mesquinhos e egoístas. Mesmo os supostamente melhores não são lá grande coisa. E é nessa visão negativa que tudo acontece.
“Carrie” tem além disso um grande defeito: conta o fim da história antes do começo, como faziam certos autores trágicos como o Abade Prevost (“Manon Lescaut”) e Dumas Filho (“A dama das camélias”), o que tira a graça da leitura. É também uma história de desconstrução: a protagonista do título está destinada a se auto-destruir ao longo da trama. O autor não tem dela a mínima piedade. Nesse ponto faz lembrar homens e mulheres dos romances citados e ainda “O Coruja” de Aloísio Azevedo, “Anna Karenina” de Leon Tolstoi, “Madame Bovary” de Gustave Flaubert e outros.
A personagem Margaret White, mãe da infortunada Carrie, é por demais exagerada na sua condição de fanática religiosa. Nas entrelinhas parece que King não tem lá grande simpatia pelo Cristianismo sem chegar aos insultos gritantes de Eça de Queiroz em “A Relíquia”. De qualquer forma na vida real não se encontram fanáticas desse tipo, tão inacreditáveis, salvo talvez casos raríssimos de psicopatas. Uma tal personagem teria de ficar trancafiada pela sua periculosidade. Nem haveria uma confissão ou seita cristã que insuflasse tal ódio e violência que chega ao homicídio.
“Carrie” é uma história de crueldade e intolerância. A professora de ginástica, Sra. Desjardim, e Sue, a colega arrependidade de participar do “bulliyng” contra Carrie, estão entre os poucos personagens não bons, mas melhorzinhos. Ela é uma arrependida relutante. E o nível da história pode ser medido por uma frase dessa mesma personagem ao seu amante adolescente:
“Quando você começou a tomar todas essas grandes decisões morais? Depois que começou a me comer?”
A impressão que dá é que o autor se preocupa mais com sexo que com terror.
Quando a generosidade de Tommy Ross, a pedido de Sue, dá a Carrie uma chance de ter vida social, a maldade vingativa de uma colega punida por ter participado do massacre moral leva tudo a perder — e diante da inimaginável agressão — levar um banho de sangue d eporco no palco e ser alvo de incontrolada chacota geral — leva Carrie a surtar, perdendo o controle dos seus poderes telecinéticos que ninguém suspeitava. Assim chega a história à tragédia final.
É lamentável a ausência de luz no final do túnel, não dando o autor uma chance à personagem: ela é levada a reagir de tal maneira, com tamanha violência no uso dos seus poderes, que torna-se um monstro assassino que não seria poupada pela sociedade ou pela autoridade, se já não fosse morta pela mãe com uma facada.

Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2017.