Reflexões sobre o conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa

Publicado originalmente no livro ‘Primeiras Estórias’ em 1962, ‘A Terceira Margem do Rio’ foi de grande importância não só para carreira de Guimarães Rosa, como também para a consolidação da literatura brasileira. O conto relata a história de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, lugar em que, dentro de uma canoa, rema “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.

O tema-chave deste conto é a reclusão de um homem em uma canoa, que se movimenta, ao longo do rio, sem direção nem objetivo. O rio em si é a “terceira margem”, aqui metonimicamente estendido à figura do ermitão (o pai) que personifica o movimento incessante das águas a circunscrever o silêncio, a solidão, a reclusão (como uma ilha) – dir-se-ia comumente personagem à margem da sociedade. Por isso mesmo, podemos ainda associar as duas margens do rio a instâncias complementares na formação do indivíduo: (i) familiares e amigos (afetivo) e (ii) o trabalho e a comunidade local (social) que o limitam e o acompanham no seu mergulho pra dentro de si, mesmo de longe, sem possibilidade de interferência em sua vontade, determinação – amarras das quais o pai se desligou ao se evadir e embarcar na canoa, não permitindo qualquer aproximação nem interação.

A história é narrada em 1ª pessoa por seu filho, que relata todas as tentativas dos familiares, vizinhos e amigos de estabelecerem algum tipo de contato com o pai, em vão. Há, na narrativa, duas caracterizações do pai: 1º) em um primeiro momento como uma pessoa normal (“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro e positivo”) e 2º) depois do afastamento/embarque, o pai é apresentado como um indivíduo cujos ideais de vida são diferentes dos padrões aceitos como normais, e por isso, com sua atitude extremada, ao mesmo tempo, afronta e perturba seus familiares e conhecidos, que irrompem em questionamentos sobre as razões de seu isolamento e alienação. (“(...) por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família.(...)”)

A narrativa transcorre ao longo do período de vida do narrador, que, de fora, tenta racionalizar a situação com angústia e desalento. Com o tempo, e desistindo de aguardar o retorno do pai/marido, a família muda-se da fazenda onde residia: a irmã casa-se e vai embora, levando a mãe, e o irmão também se muda para outra cidade. Somente o narrador permanece. Sua vida torna-se, então, uma sombra/reflexo em terra da vida do pai, repetitiva, pesada e sem sentido, a não ser pelo desejo incontrolável de entender os motivos da decisão/ausência do pai. O filho que permanece (narrador) é levado a questionar o seu próprio existir. “ (...) Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei.”

Um dia dirige-se ao rio, grita pelo pai e pede uma mudança de lugar. Mediante a aceitação do pai expressa pelo levantar-se e voltar à margem, o filho apavora-se e foge, desesperado, não suportando a ideia de continuar sofrendo no lugar antes ocupado pelo pai, pensando em libertar-se do fardo de sua existência, sem contar com o arrependimento e a culpa que o assombrariam: “E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (...) Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.” Esse momento da narrativa ilustra que nem sempre as heranças morais deixadas pelos ascendentes (pais/mães, tios, avós) devem ser assumidas repentinamente, nem devemos absorvê-las, como se fossem questões pessoais. É preciso refletir, no entanto, nos motivos que nos movem a dedicarmos nossas vidas quase inteiras ao que pensamos ser as necessidades de outros próximos; sem verdade e sem significado são vidas perdidas em si mesmas e que acabam carregando para sempre um peso individual que não lhes pertence, mas que marcam suas existências.

Os espaços literários são delineados simbolicamente nessa narrativa por aproximações com a vida sócio-afetiva dos personagens, representando lugares simultaneamente físicos e emocionais. Dessa forma, uma síntese do enredo pode ser descrita com a movimentação dos personagens pelos espaços simbólicos: (1) família e amigos = uma das margens; (2) trabalho e comunidade = outra das margens; (3) rio = terceira margem, por onde a canoa (ilha da reclusão, do ensimesmamento) se movimenta; (4) abandono da terra/casa = procura de sentido para manutenção do vínculo familiar; (5) troca de lugar = herança moral; (6) não aceitação do lugar/fuga = peso, arrependimento, culpa.

No que diz respeito à construção narrativa, A terceira margem do rio ilustra diversas características da obra de Guimarães Rosa, dentre as quais, podem ser mencionadas:

a) O uso de estruturas sintáticas diferentes das usadas normalmente.

Ex.: “Nosso pai nada não dizia.” (No lugar de “Nosso pai não dizia nada.”)

b) Criação de novas palavras (Neologismos).

Ex.: “mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.” (No lugar de “bastante”)

c) Uso do discurso indireto livre.

Ex.: “Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.” (Nesse caso, “sou doido” é uma reflexão do próprio narrador e não a fala de um personagem dentro da própria história)

d) Narração em forma de poesia, o que se evidencia pelo uso abundante de figuras de linguagens.

Ex.: “Eu permaneci com as bagagens da vida.” (Metáfora: bagagens=peso/experiência)

Esse conto de Guimarães Rosa é um excelente exemplo de que os textos literários permitem múltiplas interpretações, ou seja, são plurissignificativos. Há a possibilidade de uma interpretação religiosa, em que o “nosso pai” seria, na verdade, “o pai nosso”, que a canoa, feita de vinhático (madeira de origem persa e que pode ter sido o material da cruz de Cristo), seria o sacrifício e que as três formas de tratamento em gradação (“Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”) representariam a Santíssima trindade.

Outra interpretação possível é a de que o embarque do pai é uma forma de compreensão da sua própria subjetividade, que, seguindo a lógica do texto, não poderia ocorrer em meio à sociedade, mas sim no distanciamento das pessoas e na proximidade com a natureza e com o silêncio. Essa compreensão de si mesmo, pois, só poderia ocorrer em uma imersão rio adentro, na sua terceira margem.

Gustavo Rocha
Enviado por Gustavo Rocha em 24/08/2017
Código do texto: T6094109
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