A cidade & a cidade (China Miéville)

PULANDO AMARELINHA

Em A cidade & a cidade, China Miéville traz o gênero New Weird, misturando elementos de romance policial e distopia, tingindo essas “roupas velhas” com novos tons, resultando na subversão da ordem de importância entre pano de fundo e trama.

A narração, em primeira pessoa, é feita por Tyador Borlú, detetive da cidade-Estado chamada Beszel. Ele deve investigar um assassinato de uma mulher e, à medida em que a trama avança, surge a hipótese do crime ter relação com a outra cidade-Estado, Ul Qoma.

Não são raras histórias de policiais resolvendo casos que estão fora de sua jurisdição. Eddie Murphy, com sua franquia Um Tira da Pesada, é a prova irrefragável disso. Na pele de Axel Foley policial de Detroit (Michigan), ele vai até Beverly Hills (California) investigar o assassinato de seu amigo.

As cidades americanas citadas estão geograficamente bem afastadas, uma quase na costa leste e outra na costa oeste (imagine o Cristo Redentor, Detroit estaria em Seu cotovelo esquerdo e Beverly Hills na palma de Sua mão direita); a obra de Miéville traz um fator complicador: as cidades não estão próximas, mas imbricadas, ocupando o mesmo espaço físico!

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ESQUEÇA A TRAMA, VENHA CONHECER AS CIDADES!

Coloque suas mãos, esquerda e direita, espalmadas no seu campo de visão. Agora cruze-as, como se fosse fazer aquele movimento de espreguiçar: temos aqui uma ideia da disposição territorial de Beszel e Ul Qoma, nesta analogia, mão esquerda e direita, respectivamente.

Continue observando suas mãos nessa posição (ai! deu câimbra!): note como, por exemplo, seu dedo médio direito sai de sua mão direita, mas suas duas últimas falanges estão totalmente em contato com as costas de sua mão esquerda. De forma semelhante, as ruas e terrenos de Beszel e Ul Qoma estão entrelaçados.

Diferente da favela de Paraisópolis (foto no início do post), que possui um muro separando-a de um condomínio de luxo, no universo de Miéville esta foto estaria dobrada verticalmente (e colocada contra a luz), deixando condomínio e favela totalmente misturados.

Achou esquisito (weird)? Calma, que ainda tem mais! Lembre-se que estamos falando de cidades-Estado (assim como o Vaticano e Mônaco, por exemplo), ou seja, cada uma representa uma nação, um país diferente . E, uma vez que os territórios são entrelaçados, existem fronteiras separando-as? Sim, mas não se tratam de fronteiras físicas, mas psicológicas e burocráticas.

Desde a infância os cidadãos de Beszel, que frequentemente cruzam com pessoas da outra cidade, são treinados para ignorar os ulqomanos e vice-versa. Se, por acidente, o habitante de uma cidade olhar diretamente para o de outra deve, imediatamente, desver.

Algo difícil de compreendermos, arrisco dizer que seria semelhante ao que ocorre com algumas pessoas que passam por alguma situação-limite e acabam esquecendo ou distorcendo o que viram. Desver seria algo parecido, mas feito conscientemente e, com o hábito, torna-se automático.

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NÃO FAÇA BRECHA, SENÃO A BRECHA VAI TE PEGAR!

Na hipótese de uma pessoa ver algo ou alguém que não deveria (lembrando que a proibição vai além de pessoas, chegando a locais, coisas e animais pertencentes à outra cidade) e, deliberadamente, não desver. O quê acontece?

Quando vamos viajar para um país, em grande parte dos casos, precisamos de um visto. Se alguém entrar em outro país ilegalmente, sem visto, será detido pela Agência de Imigração e deportado para seu país de origem, além de receber outras sanções, como não poder retornar durante um período ou definitivamente.

Em A cidade & a cidade, quando ocorre tal transgressão (chamada de brecha), quem assume o caso não é a polícia de Beszel ou de Ul Qoma, mas sim um terceiro ente, chamado Brecha.

Repare que há uma certa redundância, para não haver confusão: brecha (com b minúsculo) é a transgressão e Brecha (com B maiúsculo) é a organização, que não está vinculada a nenhuma das cidades e que atua apenas nestes casos.

Ainda que, por exemplo, as cidades compartilhem ruas, cada qual deve usar sua faixa específica, assim como os pedestres devem andar na porção de calçada pertencente à sua cidade.

Imagine dois grandes azulejos, um preto e outro branco. O primeiro representa Beszel, o segundo Ul Qoma. O cidadão besz; deve sempre manter seus pés apenas nos azulejos pretos (como peças de xadrez movimentando-se no tabuleiro), da mesma forma, os ulqomanos apenas nos brancos (diferente do que ocorre com as peças do adversário no xadrez).

Agora imagine que um cidadão de qualquer uma das cidades faça o seguinte movimento: coloque um pé sobre um azulejo preto e o outro sobre um azulejo branco! Isso é brecha! Assim como ver cidadãos de outras cidades, sem desver em seguida.

O que a Brecha faz com tais transgressores é um mistério, o fato é que todos a temem, muito mais do que a polícia comum.

Ao longo do desenrolar da trama, o autor se aproveita destes conceitos, usando-os na estrutura das partes que compõem os capítulos do livro. Algo bem prazeroso, que nos permite conhecer as duas cidades, suas diferenças tecnológicas e culturais.

Para citar alguns exemplos: as viaturas da militsya (polícia de Ul Qoma) que possuem luzes que piscam com um “liga-desliga” real, enquanto às viaturas de Beszel utilizam o antiquado giroflex. Na parte cultural, além das vestimentas, existe até mesmo um “vernáculo físico” (modo de andar) próprio de cada cidade! Este último detalhe, me remete ao filme O preço do amanhã, assim como Jack Nicholson em Melhor é Impossível.

Aliás, fico imaginando como seria interessante uma adaptação deste livro para o cinema, modificando alguns pontos. Trocando, por exemplo, estas fronteiras psicológicas por algo como dimensões. O que aconteceria, por exemplo, se alguém ficasse não com os pés nos “azulejos”, iguais ou diferentes, mas equilibrando-se num “rejunte”. Não estaria em lugar nenhum, uma espécie de limbo! Em meio a essa especulação, me lembro do filme O terminal, com Tom Hanks.

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A MENTE É COMO UM PARAQUEDAS: SÓ FUNCIONA SE ESTIVER ABERTA

Nos dias de hoje, com muitas pessoas superficialmente politizadas de um lado e extremamente polarizadas de outro, não me surpreende o fato de ver muitos demonstrando genuíno interesse pela obra de Miéville, mas descartá-la e execrá-la em seguida, ao passo que descobrem o posicionamento político do autor.

Simplesmente lamento esse tipo de atitude e digo que se eu também seguisse essa postura, jamais teria lido A Revolta de Atlas, de Ayn Rand, um dos melhores livros que li na vida.

Dentro do livro A cidade & a cidade, não percebi nenhum posicionamento político de forma escancarada. Está mais para um recorte da Europa nos últimos anos, com a crise dos refugiados, radicais separatistas (no livro também temos os radicais unificacionistas, os unifs) e, talvez, a paranoia da vigilância, muito presente já há um bom tempo na Inglaterra.

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FICÇÃO REFLETINDO A REALIDADE

Para quem busca algo diferente na forma, a obra traz algo bem original, que nos faz pensar nos enclaves existentes em algumas regiões do mundo; sobretudo nos faz lembrar da realidade presente em Israel e Palestina, com assentamentos desses cercando os daqueles e vice-versa.

Também traz a questão da união versus separação, como no caso do Brexit. E os muros sendo levantados em diversas fronteiras, mostrando um movimento na contramão da tendência de globalização, livre circulação não só de comércio, mas também de pessoas.

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TCC…? NORMAS DA ABNT…? :-) :-(

Paras os acadêmicos e/ou apreciadores de estudo linguístico, este livro traz um belo agrado. Ainda que muito possa ter sido minimizado ou perdido, é interessante ver algumas gírias, neologismos criados por Miéville, que deixa a entender que suas cidades fictícias estão situadas no leste europeu.

Quem já cursou ou está cursando alguma graduação, pós, doutorado etc. irá perceber o alto nível de detalhe envolvendo notas de rodapé, referências bibliográficas, siglas como cf., et. al., entre outras. Vale lembrar que tais informações são importantes para a investigação de Borlú e nos mostram o quão interessante pode ser este “diálogo” entre autor e leitor, por meio do texto impresso de um e dos grifos, anotações e post-its do outro.

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PERSONAGENS

É preciso dizer que os personagens não são muito desenvolvidos. Ao menos os de carne e osso. Explico: ao meu ver, os personagens principais são as cidades. Você não verá descrições muito detalhadas dos personagens humanos, mas posso adiantar que Dhatt, com seu estilo impaciente e desbocado é um dos meus favoritos:

"Borlú: eu gostaria de caminhar; preciso dar uma volta. Está uma noite linda.

Dhatt: Como assim, caralho? Está chovendo".

Os diálogos entre Borlú e Corwi, também costumam ser bem espirituosos:

"Borlú: Ela provavelmente usava proxies e um cleaner-upper online também, porque não havia nada de interesse no cache dela.

Corwi: Você não faz ideia do que está falando, faz, chefe?

Borlú: Absolutamente nenhuma. Mandei os técnicos escreverem tudo foneticamente para mim […]

Corwi: Então você não entendeu nada dela?

Borlú: Infelizmente não, a força não estava comigo".

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PONTOS NEGATIVOS

Três pontos me incomodaram de maneira significativa durante a leitura, mas não necessariamente são defeitos.

1º) Diálogos truncados. Sabe quando uma pessoa está relatando algo de nosso interesse, mas fica muito reticente, se confunde, para, depois retoma o relato etc.? Pois bem, isso me deixou bem impaciente em alguns momentos, ainda que fossem características dos personagens, não sei se o autor se aproveitou disso para “enrolar” um pouco. A impressão é aquela de alguém impaciente falando com um gago (nada contra os gagos).

2º) “Barriga”. Em determinado trecho, notei que o autor adotou uma estrutura de capítulos com grande picos no final, mas com seu desenvolvimento bem lento e um tanto enfadonho, lembrando uma técnica que costuma ser muito utilizada em novelas brasileiras e alguns seriados. Felizmente, passado esse trecho, os capítulos seguintes ficam bem mais interessantes.

3º) Show don’t tell. Não vou dar spoilers sobre a trama. Mas próximo do final, não gostei da forma como parte importante da trama é revelada. Soou como algo parecido com Scooby-Doo ao invés do show don’t tell (mostre, não fale). Pesquisando, vi que o uso ou não desta técnica divide opiniões e que muitas vezes, é preciso ponderar o dinamismo da narrativa. Não sei dizer se ficaria melhor se ela fosse mais utilizada, mas fica aqui o ponto mais fraco do livro em minha opinião.

De qualquer forma, A cidade & a cidade, de China Miéville vale a pena não só ser lido mas, se possível, relido (calibre suas expectativas!). Sobretudo pela riqueza de detalhes que podem ser melhor entendidos e explorados numa segunda leitura. Conheci o livro por acaso, lendo artigos publicados por Antonio Luiz (o melhor resenhista de ficção científica do Skoob), desde então fiquei empolgado e agora, finalmente, consegui meu intento. Espero que a editora Boitempo siga publicando mais obras do autor, se possível, com um preço mais acessível.

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Ficha Técnica

Título: A cidade e a cidade

Título original: The city and the city

Autor: China Miéville

Tradução: Fábio Fernandes

Edição: 1ª

Editora: Boitempo

Ano: 2014

ISBN: 978–85–7559–419–3 (recurso eletrônico)

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Site de Tuca Oliveira (autor da foto da favela de Paraisópolis): http://www.tucavieira.com.br/A-foto-da-favela-de-Paraisopolis