"Fantoches de Deus", fraquíssimo romance de Morris West

FANTOCHES DE DEUS: FRAQUÍSSIMO ROMANCE DE MORRIS WEST
Miguel Carqueija



Se há uma coisa que eu não faço é me impressionar com monstros sagrados. E no campo da literatura os chamados “best-sellers” são verdadeiras armadilhas. Muitos não possuem a mínima qualidade.

Os fantoches de Deus (“The clows of God”, EUA, 1981) – Editora Record, Rio de Janeiro, quarta edição, sem data. Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos.

Morris West é tido como autor católico e a orelha do livro chega a defini-lo como “um dos maiores escritores dos nossos tempos” e este romance como “uma obra profunda, de amor, fé e esperança”. No entanto, além de ser medíocre, o livro em questão pode ser considerado altamente desrespeitoso à fé católica mesmo que tente disfarçar. West parece ser, isso sim, um desses “católicos liberais”, ou de esquerda, que vivem desvirtuando a fé que dizem professar.
O argumento em si é ridículo. Um papa renuncia — ou é coagido a renunciar — por causa de uma vaga revelação que anunciava o fim do mundo, ainda que a descrição dessa revelação nada colocasse claro. Gregório XVII — papa fictício, sucessor de João Paulo II — pretende anunciar à humanidade o próximo fim, mas é impedido pela Cúria, que o força a renunciar e o reduz ao silêncio.
Não adianta assinalar que o verdadeiro sucessor de S.João Paulo II, Bento XVI, renunciou de fato; trata-se de mera coincidência já que os fatos reais são de todo divergentes. Em primeiro lugar, houve a queda de Cortina de Ferro e o fim da Guerra Fria; em segundo, o pontificado de Wojtyla estendeu-se até 2005, sendo muito mais curto no livro; e existe um sem-número de outros detalhes que mostram ser West, isto sim, um pobre vaticanista.
Mas primeiro cabe assinalar um defeito gravíssimo na novela: passando-se a história ainda no século XX, e tendo sido escrita entre 1978 e 1981 — pois se refere claramente a João Paulo II, sem nomeá-lo — deveria supor vivas e atuantes muitas personalidades da vida real. Não aparece uma única, todas são fictícias. Isso mostra bem a precariedade da história.
O romance segue em parte a ótica de um amigo de Gregório XVII, o Professor Carl Mendelius, alemão e — notem — ex-padre, que deixou o sacerdócio para casar. Ele aceita relutantemente a missão exdrúxula que o ex-papa lhe propõe, de ir comunicando a revelação a algumas pessoas escolhidas. De passagem West começa a misturar as coisas, confundindo a Parusia com a destruição de uma guerra atômica o que levará a umas invectivas contra Deus que, em bom português, não passam de blasfêmias. Porém, não antecipemos.
Como se trata de um romance longo, monótono, pesado, com excesso de informações e personagens, vou me fixar nas observações que lancei ao longo da leitura:
Veja-se a coisa horrível encontrada já no primeiro capítulo, na página 17, texto de uma missiva que o papa resignatário (francês: Jean Marie Barette) envia ao tal professor e ex-sacerdote:
“Conhece as circunstâncias da minha eleição. Meu antecessor, nosso papa populista (!), realizara sua missão. Centralizara novamente a Igreja. Reforçara a disciplina. Restabelecera a linha dogmática tradicional. Seu enorme charme pessoal, o charme de um grande ator (sic), disfarçara por algum tempo suas atitudes essencialmente radicais (!).”
Como se vê, na vesga visão de West — travestido no fictício papa resignatário — João Paulo II seria apenas um fanático; e hoje é reconhecido como santo. Que há de mal em reforçar a disciplina ou defender a linha dogmática tradicional? É o que se espera de qualquer papa. O pior, porém, é que West coloca tais absurdas argumentações na pena de um papa!
Gregório XVII acrescenta que se estava na última década do século. A previsão porém falha: São João Paulo II só vem a morrer em 2005. Além disso a Guerra Fria terminara em 1989. A URSS se desfizera. A ameaça de conflito global nuclear fôra então afastada — isto na vida real.
Mendelius é outro que não fala como católico, mesmo sendo ex-padre. Na página 23, no diálogo com a esposa Lotte, ele sai-se com esta pérola:
“E milhões de pessoas, como você e eu, acreditam num Deus que não podem provar.”
Ora, as provas da existência de Deus existem — perdoem a redundância — e podem ser encontradas em muitíssimos livros, como “Curso de Apologética Cristã” do Padre Duvivier SJ. Depois ele fala no fim do mundo como se fosse apenas uma destruição, e não a volta de Cristo.
No capítulo 2 o raciocínio de Mendelius continua absurdo: “As encíclicas papais, apesar de sua autoridade prodigiosa eram geralmente documentos corriqueiros...”
Comentário meu a caneta no rodapé: “Gente, esse autor é católico?”
Na página 34 uma citação errada da Bíblia: “Não vos deixarei órfãos. Lembrai-vos de que estou convosco todos os dias, mesmo até o fim do mundo.” Não cita livro, capítulo e versículo; aliás a citação, como eu disse, está errada.
Na mesma página torna-se a citar a Bíblia sem situar a citação; admiro que um autor famoso como Morris West faça uma lambança dessas.
Que West não compreende de fato o que é a Fé, ou crença e confiança em Deus, enquanto virtude teologal, fica evidente em trechos diversos do livro, e de forma bem marcante quando são citadas passagens absurdas do escrito secreto do papa que renunciou. Ao analisar o que poderia ser a “calamidade universal” causada pela guerra atômica, Jean Marie tece essas considerações insanas:
“Quando a hierarquia sacerdotal não puder mais funcionar, eles (refere-se ao povo católico) elegerão a si mesmos como ministros e mestres, que manterão o Verbo em sua integridade e continuarão a administrar a Eucaristia.”
Ora bem, nunca a Igreja achou que a guerra nuclear era inevitável, ou que nem Deus poderia impedi-la; o fatalismo atribuído a um papa fictício torna esse texto leviano e temerário. Além disso parece limitar o Apocalipse à catástrofe, como se Jesus não surgisse no final (a Parusia).
O romance segue adiante repleto de diálogos ruins, pernósticos, personagens horríveis como a ateia Amelise Meissmer.
Na página 50 se revela a ameaça da Cúria apoiando-se numa possível interdição médica do papa:
“E apresentaram o ultimato a Gregório: abdique ou será afastado compulsoriamente!”
O pior é que a trama teria sido conduzida pelo Cardeal Arnaldo, que se torna papa em seguida.
Sabemos que as coisas não se passam assim na vida real e que o Papado é intocável. Além disso existe santidade, existe virtude na hierarquia mesmo que, é evidente, nem sempre. Mas a imagem que West faz da Igreja, em especial do episcopado, é tenebrosa e dá a idéia de uma Igreja materialista.
Queiram ou não queiram, o livro é proselitista. West advoga ferozmente a abolição do celibato sacerdotal, ignorando a alegria com que os jovens vocacionados o abraçam; e na pg. 84 atira um argumento ridículo:
“Mas o que aconteceria no futuro, o futuro próximo quando o suprimento de candidatos celibatários acabaria e o rebanho clamaria por ministério... por um homem ou mulher (sic), casado ou solteiro, não importando o que (?), desde que tivesse ouvido o Verbo e partilhasse o Pão da Vida na caridade?”
Até uma criança de cinco anos pode entender como o celibato é muito mais conveniente para um padre! Pastores protestantes se casam mas eles não são sacerdotes, são apenas pregadores! Como poderia um sacerdote conciliar o ônus de uma família com a paternidade espiritual sobre a sua parte no rebanho? Chega a ser irritante a demagogia de West, ainda por cima amparando-se em futuríveis, como se a Igreja fosse apenas uma instituição humana!
Convém esclarecer que a ordenação de mulheres é assunto encerrado pois S.João Paulo II vetou-a em definitivo utilizando a infalibilidade. Afinal, a imensa dignidade da mulher manifesta-se de outras maneiras; o homem não possui o dom sublime da concepção, da gravidez, da maternidade.
Além disso repugna ao bom senso afirmar, sem mais nem menos, a chegada de uma situação, supostamente provocada pela guerra atômica, em que deixariam de existir sacerdotes ordenados em número suficiente (na vida real o número nunca é suficiente) e que em decorrência disso o próprio povo nomearia indivíduos não-ordenados e de ambos os sexos que passariam a celebrar a Missa e consagrar as Espécies, como se isso fosse possível ou tivesse qualquer base doutrinal; porque em tal caso jamais seriam hóstias e vinho consagrados. A arbitrariedade do pensamento de West, com a agravante de serem as idéias heréticas defendidas por um ex-papa e um ex-padre, leva ao relativismo, justamente o grave perigo moderno apontado pelo grande Papa Bento XVI – a “ditadura do relativismo”!
E nesse ponto os leitores me perdoem, mas realmente eu cansei da análise. O livro é o tempo todo nesse tom e o personagem principal não muda o seu comportamento pueril e inverossímil; revela o primarismo do autor, que precisa se informar melhor sobre a Igreja Católica.

Rio de Janeiro, 3/2/2015; 12/9/2016.