A viagem de ida

Que faço da minha vida? Que me resta fazer agora que sinto a morte aproximando? Tantas coisas que não fiz e que agora nem tenho mais tempo. Tantos livros para ler. Tantas coisas para contar. De que adianta ter guardado tudo isso por tanto tempo. Este pequeno broche de borboleta que usei naquela festa de formatura há quase 50 anos atrás. Esse brinco que ganhei do meu falecido esposo. Sinto falta dele. Quase 5 anos sem ele. Depois que ele morreu não consigo pensar em mais nada. Só vivo para os meus netos. Como cresceram. Do colo a faculdade foi um pulo. E eles são tão atenciosos. Quero fazer uma viagem. Que livro devo levar? Tenho tantos livros que me marcaram: A odisseia, A insustentável leveza do ser, A bíblia, O barão nas árvores, Sonho de uma flauta... Lembro de um professor de faculdade que dizia que se quer aprender literatura, leia a bíblia. Mas acho que vou escolher Sonho de uma flauta do Hermann Hesse. O conto Íris me faz lembrar do meu marido. Ele me deu de presente este conto com uma carta cheio de desenhos e declarações de amor. Nunca liguei muito. Coisa de apaixonados, pensei na época. Como a gente não dá valor para as pequenas coisas. Como significam tanto depois que o tempo passa. Acho que vou levar um vinho tinto. Esta garrafa de Bolla Valpolicella, última garrafa que bebemos juntos. Sentávamos nas noites frias perto da lareira e líamos livros juntos. Na verdade ele lia, lia em voz alta capítulos inteiros para mim. Ele sabia ler. Eu nunca fui muito boa nisso. Deixa-me ver. Falta alguma coisa? Ah sim. Esta coisinha aqui. Vou pedir para meu neto mais velho me levar no aeroporto. Já esta quase na hora. Será que serei perdoada? Gosto desta cidade. Sempre morei aqui. Como as avenidas se alargaram. Essa rua... Aqui era onde eu morava. Bem pertinho do Aeroporto. Continua do mesmo jeito mas estes novos apartamentos... A rua perdeu um pouco sua identidade. Quando criança brincava no meio destas arvores. Quase nenhumas das antigas estão por aqui. Ainda bem que meu neto nem ficou me esperando no Aeroporto para embarcar. Ele não podia saber que voltei a esta rua. Que bom que minha antiga casa ainda esta aqui. Nunca quisemos nos desfazer dela. Onde esta mesmo a chave? Aqui esta. Lembro de correr por estes corredores. Lembro do velho porão que me escondia dos meus irmãos mais velhos e eles nunca procuravam aqui. A antiga passagem secreta ainda intacta.

Meu vinho. Por quantos dias? Esta velha cadeira. Como é bonito este conto metamorfose. Augusto nome do meu primeiro filho. Íris a minha segunda filha. Mas é o próprio conto Sonho de um flauta que me encanta. Meu nome Brigite. Será que foi mera coincidência? Será que meu pai leu este conto? Lembro que recebi este livro das mãos dele. Cante-me algo do amor... Amor distante/Sinto que me tocas/Mesmo eu tão distante/E me beijas em bocas/Mesmo eu não tão falante. Que te agora,/Não me negues desejo, /Que te quero e almejo,/ Não me deixes de fora. Que te amo e tu duvidas, /Não mais que provo,/Que te amo e choro,/Que te busco e me consolo,/Que te chamo e comprovo, Que só te amo, /Amando-te tanto.

Lembro que escrevi este poema ainda jovem...

A canção da morte... Este conto me deixa com pensamentos turvos. A canção da vida. Será que sou rei de mim mesma? O barco, a lanterna... Esta pá de pedreiro. Cada tijolo, uma passagem da minha vida.

Qual será meu último pensamento? Qual será meu último tijolo? Quando enfim me libertarei deste túmulo que construí?

Brigite achou-se 40 anos depois. Entre os ossos via-se claramente: Sonho de uma flauta bem preso entre suas mãos.