Um sussurro nas trevas


UM SUSSURRO NAS TREVAS (RESENHA)

Miguel Carqueija


Autor: H. P. Lovecraft. Livraria Francisco Alves (Rio de Janeiro), Coleção Mestres do Horror e da Fantasia nº. 4, 1982. Tradução de Donaldson M. Gorschagen. Título original: “The colour out of space and other stories”. Texto das orelhas: Fausto Cunha.


Não é fácil tarefa analisar um livro de Lovecraft, em torno do qual existe um verdadeiro culto literário. Ele costuma ser comparado a Edgar Allan Poe (1809-1849), outro gênio norte-americano, pois apesar do século que os separa, assemelham-se em muitas coisas. Um exame mais atento porém revelará importantes diferenças. Vejamos então os contos e novelas deste volume:

A COR QUE CAIU DO CÉU — Essa é uma das histórias que falam na presença misteriosa e ameaçadora de seres não-humanos e não-terrestres. Na constante visão de Lovecraft a humanidade está como que cercada, acuada, encurralada, quiçá sem dar conta disso, por seres estranhos, impiedosos, incompreensíveis e tão poderosos que é impossível opor-se a eles. Em mais de uma ocasião, nessas histórias, o autor fala em realidades “acima da tolerância humana”.
Como Poe, Lovecraft abusa do “eu” e suas histórias geralmente são narradas por personagens angustiados e estarrecidos diante de pavores inexplicáveis, como o anônimo narrador desta noveleta. O local fica nos arredores da misteriosa Arkham, cidade da Nova Inglaterra que constantemente aparece nas elucubrações lovecraftianas. O narrador garimpa uma estranha memória dos habitantes de uma região florestal próxima, onde todo um trecho foi abandonado desde os “dias estranhos” ocorridos na década de 1880, quando a vida de uma família foi totalmente transformada pela queda de um meteoro enigmático que, penetrando no solo, espalhou uma estranha cor pela vegetação — sendo isso apenas o prelúdio do horror. “Todas as árvores frutíferas produziram flores de cores estranhas, e através do solo pedregoso do quintal e do pasto adjacente começou a nascer uma vegetação bizarra que só um botânico seria capaz de relacionar com a flora normal da região.” Plantas realizavam movimentos não-naturais, Assim começa o calvário dos Gardners, que o amigo Ammi testemunhou mais do que todos. O horror vai aos poucos cercando a vida de Nahun e sua família (esposa e três filhos) sem que eles esbocem qualquer reação, como se a própria vontade ficasse paralisada diante da sutil monstruosidade vinda do espaço sideral. Tudo de ruim ou assustador vai acontecendo: o leite das vacas se estraga, insetos anormais passam a infestar a fazenda, e o pesadelo chega ao clímax quando os seres humanos do local também são atingidos pela estranha lepra cósmica. “Tadeu enlouqueceu em setembro, depois de uma visita ao poço.”
Lovecraft é extremamente instigante em seus textos. Aqui, por exemplo, insiste numa imensa estranheza da parte do meteoro: “Não pertencia a este planeta; era um pedaço do incomensurável universo exterior, e assim era dotado de propriedades diferentes e obedecia a leis diversas.” O narrador ainda sugere que a coisa nem sequer vinha da parte conhecida do universo, pois uma das falácias de Lovecraft são as possibilidades alucinantes e esmagadoras do contínuo espaço-tempo, diante das quais a raça humana é pouco mais do que nada.
A história é narrada com maestria e grande riqueza de detalhes.

A ESTAMPA DA CASA MALDITA (“The picture in the house”)
O narrador desse conto apresenta a Nova Inglaterra (uma região norte-americana), ou melhor, as fazendas antigas e solitárias de seu interior, como onde “os soturnos elementos de força, solitude, grotesco e ignorância se combinam para moldar a quintessência do tétrico.” Recheando a história com muitos adjetivos, de maneira a grifar o ambiente sombrio (o que é uma característica do seu estilo), Lovecraft, pelo anônimo narrador, vai contando algo terrível, mas que na aparência não foge ao plano natural. O personagem, fugindo a uma tempestade, se refugia numa casa estranha, dá uma olhada num antigo livro que abria facilmente na página que mostrava em detalhes um açougue de canibais (sic) e logo em seguida encontra o dono da casa, um velho de aspecto desagradável e conversa mais desagradável ainda, que se mostra fascinado pela referida estampa.
O final lembra um pouco “A queda da Casa de Usher” de Poe, só que Lovecraft deixa a coisa muito no ar, termina de maneira excessivamente abrupta, o que compromete a meu ver a qualidade da história.

O CHAMADO DE CTHULHU (The call to Cthulhu)
No ciclo referente a seres não-humanos e não-terrestres, destaca-se a figura de Cthulhu, espécie de dragão-polvo do tamanho de uma colina, que um dia dominou a Terra e agora jaz, submerso, na perdida cidade de R’lyeh. É interessante notar que Arthur C. Clarke, em seu esplêndido livro “A exploração do espaço”, comenta ser falta de imaginação o hábito de certos escritores — aqueles das “óperas espaciais” — de produzir histórias com raças alienígenas terríveis, que só querem invadir a Terra e escravizar ou destruir a humanidade. Mas ninguém poderá acusar Lovecraft de falta de imaginação. Seus extraterrestres podem ser perversos e terríveis, mas nada têm a ver com os prosaicos personagens de “space opera”. Para início de conversa eles não demonstram os mesmos interesses imediatistas, expansionistas ou exploratórios. Não formam civilizações conquistadoras, expandindo-se pelo Cosmos com frotas guerreiras ou colonizadoras. Seus propósitos são mais obscuros e espalhados por tempos inconcebíveis.
A idéia subjacente a tais relatos é a existência de potências esmagadoras, contra as quais a humanidade nada poderia fazer; e aqueles que as descobrem não se animam a divulgar suas descobertas; antes esperam que tudo continue em segredo. O narrador desta história, por exemplo, comenta: “Estaria eu caminhando na beira de horrores cósmicos além da capacidade de tolerância do homem?”
Como é característico de Lovecraft, o texto tem pouca ação ou diálogos (em geral não há verdadeiros diálogos, mas transcrição do que alguma pessoa diz, sem a fala do narrador interlocutor) e vastos parágrafos de pesquisa, raciocínio e dúvidas e temores atrozes. O narrador, que prossegue as pesquisas iniciadas por seu tio-avô, realiza um verdadeiro trabalho de detetive que levanta a existência antiqüíssima, pelo mundo afora, do macabro culto do Grande Cthulhu. Tudo parte da descoberta de um baixo-relevo do monstro: “uma cabeça globosa e tentaculada encimava um corpo grotesco e escamoso, dotado de asas rudimentares.” Essa gracinha, sendo embora um ser racional, ancestral e poderoso, de origem misteriosa e extraterrestre, com todo o saber que possuísse não inspirava aos seus seguidores nada de remotamente elevado, conforme pôde constatar o Inspetor Legrasse ao surpreender, com seus auxiliares, um culto idólatra de mestiços, num pântano ao sul de Nova Orleans, lugar mal-afamado e mal conhecido, onde, segundo lendas, existiam seres monstruosos com asas de morcego. A cena descrita, do ritual dos seguidores de Cthulhu, é medonha: “com os corpos desnudos, aquela súcia de híbridos ornejava, urrava e se contorcia em torno de uma descomunal fogueira circular (...) de dez cadafalsos (...) pendiam, de cabeça para baixo, os corpos mutilados dos infelizes posseiros que haviam desaparecido.” No centro de tudo, sobre um megalito, o “horror de argila”, a estátua do Grande Cthulhu.
Ai imaginar esse culto Lovecraft conseguiu descer aos mais fundos abismos da execrabilidade. Pois quando chegasse a hora dos “Grandes e Antigos” — à frente dos quais Cthulhu — retomariam o controle da Terra, que um dia lhes pertencera incontáveis eras atrás (há menção das ruínas ciclópicas que tanto assunto deram ao Daniken e ao Berlitz)... “a humanidade ter-se-ia tornado semelhante aos Grandes e Antigos: livres e sem peias, além do bem e do mal, libertos de leis e da moral, todos clamando, matando e exultando, jubilosos (...) e toda a Terra se inflamaria num holocausto de êxtase e liberdade.” Que ideal, meu Deus!
É interessante que o personagem, antes materialista, ao acumular os indícios sobre a real existência de Cthulhu, comente: “nunca mais voltarei a dormir calmamente, por pensar nos horrores que espreitam incessantemente (sic) por trás da vida, no tempo e no espaço, bem como naquelas blasfêmias ímpias (grifo meu), provenientes das estrelas..” Quem fala em blasfêmia ou impiedade pressupõe a existência de Deus ou de valores espirituais dignos, por elas desrespeitados; mas em nenhum momento os atormentados personagens lovecraftianos buscam qualquer socorro no Cristianismo (que é a crença ocidental predominante) ou qualquer religião; agnósticos ou indiferentes religiosos, por esse lado eles não têm onde segurar; e não contando ou crendo no apoio da própria humanidade — pelo que têm de incrível as suas descobertas, e porque a humanidade, ainda que as admitisse, nada poderia fazer contra as forças monstruosas à espreita — só lhes resta descrever o próprio terror e desespero.
Creio que só um gênio poderia escrever como Lovecraft escreve: histórias de terror denso, que levam o leitor por um vórtice de fascinação.

VENTO FRIO (Cool air) — c. 1928 by “The Personal Arts Company.

História que faz lembrar “O caso do Senhor Valdemar” de Edgar Allan Poe, na qual provavelmente se inspirou. Um sujeito que ora numa pensão é curado de uma afecção cardíaca pelo Dr. Muñoz, que mora no andar de cima e, como o Sr. Frio do seriado Batman, precisa de baixas temperaturas para sobreviver. O anônimo narrador vai explicando porque se tomou de horrores pelas rajadas de vento frio, por qualquer friagem, fobia originada em seu contato com o estranho médico cujo corpo era frio e que esfriava o seu quarto com um aparelho de arrefecimento e amônia. No decorrer da história, que é curta, chega-se logo ao desfecho de puro horror, com a revelação brutal do verdadeiro significado do metabolismo do Dr. Muñoz. É, afinal, uma história sobre as misteriosas fronteiras entre a vida e a morte, no que se aproxima de Poe. Só que em Poe muitas vezes o personagem narrador se refere a si próprio, ou seja, o horror e o anormal estão em sua pessoa (“William Wilson”, “O coração denunciador”, “O gato preto”); em Lovecraft prevalece a descoberta do horror alheio.

UM SUSSURRO NAS TREVAS (The wisperer in darkness), que dá o título ao livro, faz parte do ciclo de Cthulhu e é uma das histórias mais impressionantes já escritas. Acompanhamos o drama tenebroso que envolve as vidas de Albert N. Wilmarth, morador em Arkham, Massachussets (sempre Arkham!) e de Henry W. Akeley, de Vermont, através da assustadora correspondência entre ambos. Akeley procurou convencer a Wilmarth que os seres lagostiformes, avistados pela população de Vermont em forma de cadáveres arrastados pelas cheias da região em 3 de novembro de 1927, eram reais: “A verdade nua e crua é que possuo provas concretas de que coisas monstruosas realmente vivem nas florestas dos montes altos que ninguém visita. (...) É verdade, infelizmente é verdade, que existem criaturas não humanas que nos vigiam constantemente; que mantém espiões entre nós, a colherem informações (...) As coisas vêm de outro planeta e são capazes de viver no espaço interestelar e de voar nele.” Não esqueçamos que Lovecraft morreu dez anos antes que se começasse a falar em discos voadores.
No decorrer da traumatizante experiência dos dois personagens, uma gravação do “sussurro nas trevas” levanta uma interessante questão. A gravação, obtida por Akeley nas proximidades de uma caverna, na véspera de 1° de maio — que corresponde, em lendas européias, a uma noite sabática — apresenta uma voz humana — de um dos espiões — e uma voz zumbidora, não humana; e a conversa é hedionda, como podemos ver:
(...) sempre o louvor ao Grande Cthulhu, a Tsathoggua, e Àquele que Não Deve Ser Nomeado. Sejam sempre louvados, e haja abundância para o Bode Negro das Florestas. Iä! Shub-Niggurath! O Bode de Mil Filhos!
(...) Iä! Shub-Niggurath! O Bode Negro da Floresta, de Mil Filhos!”
Fico pensando como é que uma raça altamente avançada, capaz de atrravessar os espaços interestelares, dona de conhecimentos científicos muito superiores aos nossos, vai se preocupar em praticar rituais de macumba com “iniciados” terrestres. Gostaria de saber que bode é esse e o que é que ele pode ter com os alienígenas.
E mais, que aconteceu de fato com os cachorros de Akeley?

UM FRÁGIL ANCIÃO (The terrible old man, c. 1926) – Aqui temos o caso dos gajos que vão buscar lã e saem tosquiados. Três bandidos planejam assaltar a casa de um velho misterioso, de quem se contam coisas estranhas. Ora, o título original pode ser traduzido por “O velho terrível”. O resto deixo à imaginação de quem não leu...

SOMBRAS PERDIDAS NO TEMPO (The shadow out of time, c. 1936) – Aqui já temos uma verdadeira novela, na qual aparecem de novo alguns lugares-comuns lovecraftianos: a inevitável Arkham (que de repente inspirou até o nome do asilo onde o Coringa é sempre internado), a Universidade de Miskatonic e o terrível livro (imaginário) “Necronomicon”, do também imaginário Abdul al-Hasred. E mais uma vez se fala em “cultos ímpios” relacionados com os seres não-humanos que vigiam a humanidade. Entretanto o Professor Nathaniel Wingate Peaslee, que narra sua estarrecedora experiência com a “Grande Raça”, que dominava a Terra a “apenas” 50 milhões de anos e ainda era capaz de influenciar as épocas futuras através de projeções no tempo, fala de coisas ímpias mas não supõe nenhum antídoto possível. Curiosamente essa história parece meio separada, embora não tanto como “A cor que caiu do céu”. Aqui não se fala em Cthulhu e não se enxerga claramente a relação com as descobertas feitas em “O chamado de Cthulhu” e “Um sussurro nas trevas”.
É verdade que, ao falar das raças que possuíram a Terra no passado, Nathaniel observa que “algumas daquelas criaturas tinham vindo das estrelas; outras eram tão antigas quanto o próprio universo; ainda outras tinham-se desenvolvido celeremente a partir de germes terráqueos, tão distantes, no tempo, dos primeiros germes do nosso ciclo vital quanto esses próprios germes estão afastados de nós. Falavam-se em períodos de milhares de milhões de anos, assim como de relações com outras galáxias e universos.” Diante de grandezas tão inconcebíveis talvez a Grande Raça não se encontrasse com o Grande Cthulhu ou os lagostiformes, e não se entende bem porque é que a Terra acabe sendo o centro de atenção de tantos e tão poderosos seres, ainda por cima oriundos por vezes de tempos hiper-ancestrais ou outros universos. As histórias de Lovecraft dão vertigens.
Entretanto a Grande Raça — “imensos cones rugosos de três metros de altura, com a cabeça e outros órgãos presos a membros telescópicos de palmo e meio de largura, que saíam dos ápices” — não é tão antipática. Pelo contrário, são seres até bastante civilizados, apaixonados pela acumulação de conhecimentos, que vão buscar em outras épocas, e eles próprios sofrem o pavor das criaturas sutis capazes de controlar o vento, exilados nas entranhas do planeta e cujas vias de saída permaneciam lacradas por grandes alçapões. A luta multimilenar entre a Grande Raça e os pólipos das profundezas faz o pano de funco desse drama onde a Humanidade afinal, parece pouco representar. Curiosamente, essa história é excludente em relação à ameaça da volta de Cthulhu, já que não se vê sinal dele no futuro desvendado ao obsecado Nathaniel.
Essas histórias de Lovecraft têm que ser lidas e relidas, tamanha a riqueza de conteúdo e a engenhosidade dos enredos.


HOWARD PHILIPS LOVECRAFT (H.P. Lovecraft, 1890-1937) — O Edgar Allan Poe do século XX, igualmente norte-americano, natural de Rhode Island, criador do ciclo de Cthulhu, que foi prosseguido por outros escritores como August Derleth. Mestre do terror, Lovecraft é considerado também um ás da ficção científica.