No Mundo de 2020 (Soylent Green, 1973)

Em um futuro próximo, a cidade de Nova York possui uma (super)população de 40 milhões de pessoas, que sente na pele o que, outrora, eram apenas previsões sobre o efeito estufa e o aquecimento global. Condenados a viver em blocos sem distribuição de energia elétrica e sem permissão para sair em busca de uma vida melhor, os habitantes lutam dia após dia tentando sobreviver, ainda que sem dignidade.

Há racionamento de água e comida. Esta última, para a maioria da população, se resume ao Soylent, com uma “variedade”, que mais lembra cartuchos de tinta: Soylent Red, Soylent Yellow e, o mais procurado, Soylent Green.

O filme dirigido por Richard Fleischer chama atenção, logo de início, pelo fato de que as pessoas estão sempre transpirando. O detetive Robert Thorn, interpretado por Charlton Heston, anda sempre com um lenço amarrado no pescoço, com o qual enxuga seu suor. Enquanto faz o trabalho de campo, Thorn conta com a ajuda de Solomon Roth (mais conhecido como “Sol”) em suas investigações, um idoso que vasculha livros em busca de informações.

Thorn e Sol moram numa casa paupérrima: há uma cena em que luz do recinto começa a enfraquecer, Sol vai em direção à uma bicicleta ergométrica e começa a pedalar e, logo a luz volta à intensidade normal (sim, eu sei “Isso é muito Black Mirror!”). Em outras casas, existe uma variante com manivela, afinal também é importante exercitar os membros superiores!

Mas se você acha que a moradia deles é ruim, espere até ver as escadas à noite, quando estão apinhadas de gente dormindo. Exceto pelo vigia, de rifle nas mãos, que garante sua segurança, já o sono ficará a mercê de uma pisada ou esbarrada de Thorn, que faz incursões noturnas com frequência.

Proteína animal, como carne bovina, é um luxo acessível apenas aos ricos, assim como frutas e hortaliças. O povo, em regra, fica restrito mesmo ao Soylent vermelho e amarelo, feitos com soja e o mais recente: Soylent Verde (o Soylent Green que dá título original do filme), criado a partir de algas marinhas, rico em proteína.

Além disso, há outro fator complicador. Estes alimentos não podem ser comprados livremente. Existe um dia certo para sua distribuição, onde são montadas barracas nas ruas, como se fossem feiras. Nesses dias, as pessoas devem pegar filas para receber seu auxílio, informando seu número e escolhendo entre pegar um valor em dinheiro ou em cupons de comida (uma espécie de vale-refeição).

Mas a burocracia não para por aí, há um racionamento na distribuição destes alimentos. Não importa a quantidade de dinheiro e cupons que a pessoa possui, só poderá pegar sua cota e nada além disso. Tal prática remete ao 1984, de George Orwell e as “rações de chocolate”. Assim como é possível comprar “retalho de frios”, também existe um mercado de restos de Soylent, uma opção mais barata ou talvez a única opção que reste, no caso de falta de tabletes.

Também me recordo, há muitos anos, quando houve um racionamento de gás de cozinha no Brasil. Filas enormes nos postos de gás (à época, gás encanado era comum somente em alguns condomínios), cada pessoa poderia levar apenas um botijão (trocava-o por um cheio). Lembro de um senhor que insistia em levar dois botijões, o que causou grande discussão e pessoas chegando quase às vias de fato.

Para citar mais um exemplo, a cena do posto de gasolina durante o êxodo no filme Guerra dos Mundos, de 2005. Em No Mundo de 2020, não é diferente. pessoas reclamam das restrições de gramas, cada vez menores e a confusão se instaura. Para contê-la, há um destacamento da Polícia para o controle de motins, curiosamente trajando capacetes de futebol americano, talvez, uma relíquia do passado.

Aliás, é bem peculiar a técnica utilizada para dispersar a multidão: são usados caminhões com pás de retroescavadeiras, que “recolhem” os manifestantes das ruas. Estes caminhões são os únicos veículos em funcionamento que vemos. Os carros estão abandonados nas ruas e parece que sua única serventia é a de moradia ou o uso da borracha de seus pneus para fazer sandálias. De qualquer forma, as pessoas não têm permissão de sair da Zona Urbana.

Os telefones “públicos” podem ser usados, mas somente por pessoas autorizadas, como o detetive Thorn. É necessário abrir o compartimento com uma chave e depois informar à telefonista seu nome e número de registro.

No Mundo de 2020 é daqueles filmes para se assistir mais de uma vez. Mas vai a dica aos marinheiros de primeira viagem: muita atenção ao vocabulário utilizado pelos personagens! Palavras comuns podem ter um significado bem diferente no universo do filme.

Para citar um exemplo, o termo mobília. Conhecemos mobília como: “o conjunto dos móveis que adornam ou guarnecem uma casa, um escritório”. No filme, existem mulheres que recebem tal designação! Quando o imóvel é alugado, o inquilino tem direito à “mobília” que existe no imóvel! Demorei bastante para entender isso, até estranhei o frequente uso do substantivo, quando compreendi, fiquei desconcertado.

Apesar da longa exposição, acredite: não estou dando spoiler do final do filme. Aliás, existem outras coisas que não citei e que valem a pena ser descobertas ao assistir o filme.

Trata-se de um filme de 1973, mas que ainda se mostra muito atual no que tange aos debates sobre: aquecimento global, uso desmedido dos recursos naturais, desperdício, obsolescência programada, superpopulação, dependência energética de fontes não renováveis, fome etc.

Como gosto de distopias, já estava interessado no filme. Mas fiquei mais ainda depois de ver um vídeo da Vice, no qual um repórter passa um mês se alimentando apenas com uma espécie de shake, chamada Soylent. O nome, obviamente, foi inspirado no filme. A diferença é que o produto real é consumido na forma líquida, enquanto no filme, é sólido. Mas já deixo um importante aviso: o vídeo possui SPOILER do filme. Não recomendo que assista antes.

Infelizmente, assisti o filme já sabendo do final (por causa do vídeo da reportagem). Além disso, é muito comum que as pessoas se empolguem com o final do filme e soltem spoiler, portanto tome cuidado ao ler comentários e resenhas.

Recomendado aos fãs de distopia, infelizmente é um filme desconhecido pelo grande público, ainda que não seja tão grande como O Planeta dos Macacos (de 1968, também estrelado por Charlton Heston), é um ótimo filme e já figura entre os meus favoritos.