Narratividade Clássica: análise do filme As Crônicas de Nárnia – O leão, a feiticeira e o guarda-roupa.

1. Considerações sobre a narratividade clássica:

A narrativa denominada clássica geralmente se confunde com o próprio cinema norte-americano, ou bem, com a narrativa frequentemente explorada em Hollywood. Contudo, não é que sejam a mesma coisa, mas sim, que a narratividade clássica de tradição romanesca se desenvolveu no meio cinematográfico hollywoodiano e acabou por adquirir características da cultura estadunidense.

De fato, é em Hollywood que se observam constantemente as influências da narratividade clássica. O cinema hollywoodiano clássico foi consolidado do início do século XX e tem algumas características marcantes e presentes em muitos de seus filmes de sucesso. Sua base é a construção de histórias claras, capazes de entreter o espectador e criar com ele uma relação vívida de identificação pessoal, uma espécie de catarse, já que a estrutura do cinema clássico muitas vezes reflete situações psicologicamente válidas e realistas, mesmo quando contam uma história fantástica.

Também é caracterizada pela construção e apresentação de personagens bem definidos, com objetivos claros e determinados, que entremeiam o decorrer da história com diversos conflitos, culminando num final resolutivo que alcança o objetivo principal, geralmente, o bem maior. Com efeito, os mecanismos cinematográficos utilizados, desde a iluminação, até a sonoplastia, edição, cenografia, etc., têm função muito além de apenas criar imagens atrativas, qual seja orientar a atenção da audiência para os eventos narrativos momento a momento.

Além disso, a narratividade clássica está pautada numa relação de causalidade entre os fatos apresentados, que se dá por meio de ações e consequências. A história é dividida em três atos: no primeiro, há um estado inicial equilibrado que sofrerá uma perturbação (quebra, violação) para dar lugar ao segundo ato, em que ocorre a luta para alcançar objetivos e o desenrolar de situações conflituosas, no terceiro e último ato, tais conflitos são resolvidos através da extinção do elemento perturbador e o há o alcance do objetivo final. Portanto, a narrativa clássica pode ser caracterizada por apresentar uma estrutura dramática com início, meio e fim bem definidos. Também os pontos de crise e clímax são bem marcados, em geral, no final do segundo ato e no início do terceiro, respectivamente.

2. O filme

As Crônicas de Nárnia: O leão, a feiticeira e o guarda-roupa (2005) é uma adaptação feita pela Disney e Walden Media, dirigida por Andrew Adamson, do romance de literatura fantástica escrito por C.S. Lewis, publicado em 1950. Em sua estrutura de roteiro, apresenta aspectos característicos da narratividade clássica, desde os personagens bem definidos e com objetivos traçados até os obstáculos e as soluções, assim como o costumeiro final feliz. É um filme com alma de infantil, mas que com muita sabedoria conduz o espectador através de uma aventura com uma bela lição no final.

Primeiro Ato:

No cenário caótico de Londres em plena Segunda Guerra Mundial são introduzidos os personagens principais Pedro, Edmundo, Lúcia e Susana Pevensie, enquanto eles correm com sua mãe para um abrigo contra bombardeios aéreos. Logo de início notam-se alguns aspectos sobre os dois primeiros irmãos. Pedro, o mais velho, é mostrado como uma pessoa de pretensa autoridade e liderança nata; já Edmundo, é ousado e rebela-se constantemente contra essa autoridade. Fica logo subentendido o conflito entre os irmãos, o que dá a entender que esse será um dos problemas a ser solucionado durante o filme.

Na próxima cena, os quatro embarcam num trem para ir morar com o tio no interior. Mais características sobre as outras personagens são apresentadas: Susana, como irmã mais velha depois de Pedro, é apontada como uma figura responsável e racional, uma menina-mulher, quase uma mãe para seus irmãos; enquanto Lúcia, a caçula, é essa figura ingênua e assustada, mas também gentil e curiosa.

É Lúcia quem acaba por descobrir, depois de várias cenas da chegada dos protagonistas à casa do tio, o guarda-roupa que guarda a passagem para Nárnia, durante uma brincadeira de esconde-esconde. Sozinha no país fantástico, ela conhece um fauno (Sr. Tumnus) que, depois de muito conversarem, menciona uma Feiticeira Branca, como a responsável pelo eterno inverno em Nárnia. O medo que Tumnus demonstra ter por ela deixa claro ao espectador que tal personagem é a vilã da história, e que a partir daí a narrativa transcorrerá de modo que os protagonistas a enfrentem e a derrotem, ou seja, já começa a se traçar o objetivo final.

A perturbação do primeiro ato ocorre quando, depois de mais algumas cenas de Lúcia tentando convencer os irmãos a respeito da existência de Nárnia, Edmundo resolve entrar no guarda-roupa e acaba se deparando com a mesma passagem. Já no país fantástico ele tem um fatídico encontro com a Feiticeira Branca e é ludibriado, levado a acreditar que ela o fará Rei se ele atrair seus irmãos para Nárnia e para o seu castelo gelado.

Quando Edmundo consegue levar todos a se esconderem da governanta da casa dentro do guarda-roupa, tem início a partir daí o segundo ato, com todos os protagonistas agora em Nárnia.

Segundo Ato:

Numa sucessão de eventos que conduzem a narrativa, os irmãos Pevensie descobrem uma profecia clamada por todos os cidadãos de Nárnia. Diz a profecia que dois “Filhos de Adão” e duas “Filhas de Eva” um dia se juntarão a Aslam, o leão, verdadeiro Rei de Nárnia, para lutar contra a Feiticeira Branca e libertar o povo de seu domínio opressor. Logo, tudo leva a entender que eles são os heróis da profecia, e, portanto, seu objetivo fica claro. Mas, num primeiro momento eles se recusam a se juntar ao exército que Aslam está reunindo, até que Edmundo resolve ir escondido ao encontro da Feiticeira, e, caindo em sua armadilha, é preso por ela. Assim, a única chance de Pedro, Susana e Lúcia salvarem seu irmão é se juntando a Aslam contra a vilã.

Após uma jornada sendo perseguidas pela Feiticeira, as crianças finalmente chegam ao acampamento do leão, e este, ao tomar conhecimento da situação de Edmundo, ordena aos seus soldados que ele seja resgatado. Mas a vilã resolve apelar para as leis de Nárnia, justificando que todos os traidores devem ser entregues a ela e, já que Edmundo traiu os irmãos ao ir ao seu encontro, isso faz dele um traidor e ela tem o direito de mata-lo.

Para salvar Edmundo, Aslam entrega a si mesmo para a Feiticeira e ela então o mata em seu lugar naquela mesma noite, recorrendo a um ritual de sacrifício realizado na lendária Mesa de Pedra.

Com o leão morto, a crise se abate sobre o povo de Nárnia, que resolve ir finalmente à guerra. Neste meio tempo, em que o conflito principal é formado, o conflito secundário entre os irmãos Pedro e Edmundo começa a se resolver à medida que um aprende a confiar no outro. Ou seja, a história já se encaminha para o clímax e para as resoluções da parte final que marcam o terceiro ato.

Terceiro Ato:

Acontece que a Mesa de Pedra onde Aslam foi sacrificado continha um poderoso feitiço que podia reverter a morte de quem fosse levado até ali voluntariamente, intercedendo por um traidor. Assim, ao amanhecer de um novo dia, o leão volta à vida e ajuda Susana e Lúcia a destruir o castelo de gelo da Rainha Branca para libertar os narnianos que haviam sido ali aprisionados. O primeiro conflito então se resolve e a crise da morte de Aslam tem um final feliz clássico.

Resta por fim a luta final contra a Feiticeira. No clímax da batalha entre os dois exércitos, Edmundo consegue destruir a varinha da vilã e reverter a guerra a favor dos narnianos, mas acaba sendo ferido mortalmente por ela. Pedro e Aslam, aproveitando a deixa, finalmente a derrotam e o objetivo principal da trama, libertar o povo e trazer a paz de volta à Nárnia, é enfim alcançado.

O final feliz se completa quando Lúcia, com seu elixir mágico que cura qualquer ferida, consegue curar Edmundo e todos os outros feridos em batalha. Os quatro irmãos se tornam Reis e Rainhas de Nárnia e a profecia é cumprida.

Assim, o filme consegue performar todos os aspectos da narratividade clássica, desde apresentar diretamente os personagens e seus objetivos, propor obstáculos e soluções, evidenciando a relação entre causa e consequência em todas as cenas, e realizar o desfecho alegre que todos esperavam desde o início. Segue tipicamente o conceito da Jornada do Herói de Joseph Campbell e, portanto, se torna um dos mais emblemáticos filmes de aventura fantástica para crianças e adolescentes.

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 05/06/2017
Código do texto: T6019430
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