"Rudy"

"Rudy"




“Rudy”, a título de esclarecimento prévio, perfaz uma dessas histórias necessárias. Tema batido? Pode ser, superação já não rende o que rendia. O primeiro pensamento que vem à mente reside no clichê de um cara querendo ser o que não pode ser. Mas isso paira na superfície. O buraco mais embaixo é que ele sabe disso, e tudo o que ele quer, na verdade, é viver a experiência. Apenasmente.

Daniel Eugene "Rudy" Ruettiger nasceu em 1948 com uma espécie de chip nas entranhas que buzinava dia e noite desde a tenra infância: vou jogar football na University of Notre Dame.

Família numerosa, chão de fábrica, o sonho americano lhes proporcionou casa, carro, estudo, mas não uma universidade desse naipe. Os familiares riam, e em conversas amenas diziam: cai na real. Em diálogo mais profundo, quando o pai lhe conta que o avô, por um sonho doidivanas, comprou terras e 150 vacas, que morreram em menos de um ano, o que o levou a desaparecer para sempre, os filhos se espalharam por aí e cada qual construiu sua vida. No caso do pai de Rudy, labuta numa siderúrgica, penumbra e fogo pra todo lado, porém garantia de um teto e comida na mesa.

“Rudy”, o filme, foi lançado em 1993, figura no panteão de um dos 25 melhores filmes de esporte e seu diretor, David Anspaugh, tem inexplicavelmente uma página anêmica na Wiki. Quiçá algum desafeto.

Absolutamente tudo vai na contramão do sonho do pequeno Daniel Eugene. A saber: ele é pobre, não de marré, marré, marré, porém anos luz de custear os estudos, suas notas escolares são baixas, o que leva o espectador a considerar que o protagonista se encaixa na tarja “meio burrinho”, e por fim, fisicamente, sua compleição enquadra-se naquilo que se conhece por “mignon".

Rudy toma o ônibus e vai ao encontro, sem saber, do padre
John Cavanaugh, (Robert Prosky), a bondosa alma que se depara com o rapaz de 22 anos carregando uma mala e dizendo "quero entrar na Notre Dame" como se isso fosse um drive in ou uma farmácia. Foi no tom da compaixão que o padre o insere no instituto do outro lado da rua, por assim dizer, Holly Cross, e se ele tivesse boas notas ali, poderia tentar a Notre Dame.

O roteiro de Angelo Pizzo, após uma leve pesquisa, contém uma ou outra mentirinha, nem vale a pena partilhar com o leitor pois “Rudy”, (o filme) é uma história verídica sobre um sapo que como se disse não queria ser um príncipe, apenas vivenciar de que se trata tal situação. Inda assim toda a película nos oferece a intervalos momentos principescos, como por exemplo quando o ator afro americano Charles S. Dutton, na pele de uma espécie de zelador do complexo esportivo de Notre Dame, coloca sobre a cama de um modesto cômodo, misto de escritório e almoxarifado, uma chave e um cobertor. Rudy entrava pela janela, de noite, pois não tinha onde dormir nos seus 4 semestres de Holly Cross. Ele conseguira um trabalho com esse zelador como assistente do assistente do assistente, enquanto estudava insanamente e gritava aos 4 ventos o seu amor pelo time da universidade.

Tem sido dito pelos canais competentes que os inerentemente compassivos e amorosos estão entrando em seu momento de ação, a primeira ação sempre sendo interna. Na linha do tempo nosso herói está um pouco adiantado, o enredo chega no seu auge em 1975, entretanto, Rudy em linhas gerais ou até além disso não se relaciona com drama, consciência de vítima e dualidade.

Bem, a namorada o abandona, os mais cínicos diriam que ele sofre de certa co-dependência com relação ao pai, ou se preferir a família toda, a cada xis meses ele liga narrando seus progressos, nesta vida a gente precisa partilhar com alguém nossos sucessos e lamúrias.

Verdade seja dita, neste registro escolhido a dedo pelo cineasta David Anspaugh, o espectador de modo paulatino passa a torcer pelo mignon Rudy, um duro desafio onde tudo que ele adquire se chama escárnio, dá gosto ver sua solidão focada, as tentativas sequenciais frustradas de ingressar numa prestigiada universidade dos Estados Unidos, não por status, fama, cobiça, ganância, só pelo sonho maluco de vestir a camisa do time da universidade.

Ele quase desiste. Padre Cavanaugh busca palavras num momento de desespero do protagonista: estou na vida religiosa há 35 anos e adquiri somente duas certezas, uma, Deus existe, outra, eu não sou Ele.

Eles se olham.

No dia seguinte Rudy é admitido pela Notre Dame. Aí começa a encrenca. Como é que um sujeito miudinho vai se arranjar no meio daqueles brutamontes? O escárnio vira espanto, depois respeito, hematomas pelo corpo e a declaração de mais de um treinador que, apesar dele não ter físico de atleta, oxalá os outros jogadores tivessem 10% do seu coração e da sua coragem.

O espectador continua torcendo por ele.

Parece que foi a primeira vez em 50 anos que a direção da Notre Dame College (fundada em 1922) deixou uma equipe de filmagem entrar ali.

Mais uma vez o roteiro nos fornece o que pode haver de melhor no ser humano: generosidade, senso de justiça, altruísmo. Não obstante os técnicos reconhecerem sua fibra nos treinos, ninguém quer escalá-lo. Vem a cena antológica onde cada jogador tira a camisa e coloca na mesa do diretor, dizendo: gostaria que o Rudy jogasse no meu lugar.

Digo aqui para constar: o cinema perdeu isso.

Que também conste que nenhum outro jogador da Notre Dame, até então, foi carregado nos ombros no término do jogo, em desfile pelo estádio.

Rudy jogou três minutos cravados em campo, os últimos três minutos. Seu sonho se realizou. Uma vitória da tenacidade com anseio anímico infantil. Crianças são assim, brincam por brincar.

No ano seguinte ele se forma, e seu legado possibilitou que os irmãos menores quebrassem o paradigma familiar da baixa escolaridade, arriscando a sorte no impensável e ali também se graduassem.

Como diz o Mestre K., "Alguns de vocês podem fazer uma grande mudança com o que vocês fazem pessoalmente com vocês mesmos agora".
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 05/06/2017
Reeditado em 08/06/2020
Código do texto: T6019219
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