O Enigma de Kaspar Hauser

O filme “O enigma de Kaspar Hauser”, cujo título original é “Jeder für sich und Gott gegen alle” (Todo mundo para si e Deus contra todos), conta a história real de um jovem que foi encontrado abandonado, no ano de 1828, na cidade de Nuremberg - Alemanha. Em sua mão havia uma carta endereçada ao Capitão de Cavalaria do Quarto Esquadrão – oficial da guarda. Este jovem que mal sabia andar e só pronunciava uma frase, foi, posteriormente, chamado de Kaspar Hauser.

Kaspar Hauser viveu preso em um calabouço desde o seu nascimento, seus alimentos (pão e água) e suas roupas eram colocados e trocados durante a noite, enquanto ele dormia. Por isso, ele ignorava o mundo exterior e a existência dos seres humanos. Também, não tinha a noção do que era uma casa, uma árvore ou a falava,

A carta que Kaspar Hauser trazia em sua mão dizia o seguinte:

“Envio-lhe um jovem que deseja servi seu rei. Ele foi deixado na minha porta no dia 7 de outubro de 1812. Sou um mísero trabalhador com dez filhos e mal consigo sustentá-los. Quando a mãe largou o filho para que eu criasse, não me deixou nenhuma informação. Por isso, não denuncie às autoridades. Ele não saiu de casa desde 1812, para que ninguém soubesse. Pode perguntar, mas ele não saberá responder. Eu o ensinei a ler e a escrever. E se perguntar o que quer ser, ele dirá que quer ser um tão bom cavaleiro quanto seu pai foi. Se ele tivesse tido pais, creio que teria sido um jovem inteligente. Basta mostrar que ele entende. Sr. Capitão, ele não deve de forma alguma ser maltratado. Ele não sabe onde moro. Eu o trouxe durante a noite. Não quero que saibam o meu nome, por isso não assinei esta”.

Kaspar Houser não parecia ser tão selvagem. Ele aparentava ser tranqüilo, parecia ser um bom rapaz, não tentou nada de insano ou anormal contra as pessoas e não parecia ser vândalo. Mas, mesmo assim, foi entregue à burocracia das autoridades e mantido, inicialmente, numa torre onde, se prendiam, também, os ladrões e os vagabundos. Enquanto permaneceu nesta torre, Kaspar Hauser era cuidado pela família do carcereiro. Nesta família, Kaspar Houser recebeu sua primeira educação de comportamento social, além de aprender novas palavras, ensinadas principalmente pelos filhos do carcereiro, Julius e Agnes.

As autoridades colocaram Kaspar Hauser em um circo para custear as suas custas com o município de Nuremberg e para contribuir com o seu próprio sustento, aproveitando a situação já que existiam muitos curiosos populares que queriam ver Kaspar Hauser. No circo, Kaspar Houser foi visto pelo professor Daumer, que o levou para sua casa, onde permaneceu por cerca de dois anos,

Na casa do Dr. Daumer, Kaspar Hauser passou a dormir num quarto com cama e a ser educado. Ele desenvolveu sua fala, desenvolveu sua coordenação motora, passou a alimentar-se melhor, aprendeu a tocar piano, sofreu educação religiosa, desenvolveu a sua escrita e participou de eventos sociais. Também, adquiriu consciência de si próprio e questionava a sua própria existência. Mesmo, apresentando um rápido progresso cognitivo, Kaspar Hauser apresentava dificuldades para compreender temas com “distância” e “a noção de perspectiva”, também confundia sonho com realidade, além de apresentar algumas fobias.

Kaspar Hauser começou a recorda-se do seu cativeiro vivido na sua infância e por isso foi assassinado. Seu primeiro tutor temia ser identificado e localizado.

A carta lida pelo Capitão de Cavalaria do Quarto Esquadrão, descrita acima, descreve as condições as quais Kaspar Hauser foi submetido durante a sua infância e a sua adolescência. Para entendermos melhor as deficiências cognitivas de Kaspar Hauser e como se deu o seu processo de Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem após a sua libertação do cativeiro, serão descritos abaixo, cronologicamente, algumas cenas e seus respectivos diálogos acompanhados de suas bases teóricas modernas e contemporâneas.

• Kaspar sozinho no cativeiro:

Faz gestos/movimentos com a mão e emite grunhidos ao segurar com a mão esquerda um cavalo de pau.

Percebe-se, nesta cena, a defesa da teoria Vigostskyana, interacionista, para quem a aquisição da identidade e da humanidade do homem se dá unicamente por intermédio da interação social. O isolamento fez com que Kaspar não tivesse uma identidade ou vontade própria.

Para a teoria piagetiana, Kaspar está no estágio sensório-motor, pois seu desenvolvimento iguala-se ao desenvolvimento de um bebê de 0 a 24 meses de idade. Isto corresponde a um estágio anterior à linguagem.

Para a teoria gerativista, Kaspar esta na fase pré-linguística.

• Diálogo entre Kaspar e seu primeiro tutor, ainda no cativeiro:

Tutor:

- Quando aprender a escrever, ganhará um lindo cavalo do papai. Cavalo, cavalo, cavalo.

Kaspar:

- Cavalo, cavalo.

Aqui, nesta cena, é percebida a teoria behaviorista que defende que a aquisição de linguagem se dá por meio da imitação e repetição, além, também, da recompensa e da punição.

• Diálogo Kaspar e Julius, na torre:

Kaspar:

- Dedo, polegar, braço.

Julius:

- Isto é mão, isto é braço.

Kaspar:

- Braço, braço.

[...]

Julius:

- Não, isto é mão, e isto é braço.

Kaspar:

- Mão, mão.

Julius:

- Isto é braço.

Kaspar:

- Braço, braço, braço, braço.

Este dialogo defende a teoria behaviorista. Pois mostra, novamente, que a aquisição de linguagem se dá por meio da imitação e repetição.

Os diálogos a seguir mostram algumas das deficiências cognitivas apresentadas por Kaspar Hauser, fruto do seu isolamento no cativeiro.

• Dialogo entre Kaspar e o Dr. Daumer:

Kaspar olha para uma torre e diz:

- Isto é muito alto. Só um homem muito grande poderia ter construído isso. Eu gostaria muito de conhecê-lo.

Dr. Daumer:

- Não, Kaspar. Não é preciso ser tão grande para construí-la, pois existem andaimes. Entenderá quando eu o levar a uma construção. Você morou nesta torre, atrás daquela janela. Não se lembra?

Kaspar:

- Isto não é possível, pois o quarto só tem alguns passos de largura.

Dr. Daumer:

- Não entendo.

Kaspar:

- quando estou dentro do quarto e olho à direita, à esquerda, à frente e para trás só enxergo o quarto. Quando mim, olha para a torre, eu, não mim, e depois me viro, a torre desaparece. Então, o quarto é maior que a torre.

Neste dialogo Kaspar demonstra não ter a noção de distância e, também, não ter noção de perspectiva.

Os próximos diálogos mostram o desenvolvimento cognitivo de Kaspar ao interagir com a sociedade.

• Dialogo entre Kaspar e a Sra. Kathe (governanta):

Kaspar:

- eu inventei uma historia sobre o deserto. Mas, eu só sei o começo.

Sra. Kathe:

- O Sr. Daumer já me falou sobre isso. Disse que várias vezes você tentou contar uma história, mas só sabe o começo. E você deve contar ela inteira e não apenas o começo. Ele leva a sua educação muito a sério e quer que você aprenda a contar direito uma história.

• Dialogo entre Kaspar e o Sr. Daumer:

Kaspar:

- Eu tive um sonho.

Sr. Daumer:

- Você sonhou. O que sonhou? Conte-me.

Kaspar:

- Sim, eu tive um sonho.

Sr. Daumer:

- Fico feliz que tenha feito progresso. Antes, você não diferenciava sonho de realidade. [...]. Curioso. É curioso que durante tantos anos no cativeiro, você nunca tenha sonhado.

Kaspar:

- Eu sonhei com Caucaso.

Aqui, a partir deste dialogo, percebe-se que Kaspar já consegue se situar em relação ao mundo e as pessoas que estão ao seu redor. Kaspar já é capaz de ter pensamentos abstratos e a demonstrar uma inteligência independente dos conceitos e das expectativas esperadas pela sociedade de sua época. Para a teoria piagetiana, Kaspar já esta no estágio operatório-formal, o que acontece quando a criança está acima dos 11 anos de idade. É a fase em que o raciocínio e a dedução se fazem presente.

Kaspar nunca se sentiu a vontade na sua vida social, sempre preferia o cativeiro. Não entendia os valores da sociedade de sua época e questiona sua conduta em relação a Deus e às mulheres. Mas, mesmo não se fazendo compreendido, até porque a sociedade não o queria entendê-lo, Kaspar apropriou-se de uma linguagem e apresentou padrões de desenvolvimentos da linguagem acelerados, mesmo não eliminando por completo suas deficiências cognitivas adquiridas na sua infância, quando do isolamento social. Kaspar é um exemplo de como se processa a aquisição e o desenvolvimento da linguagem na sociedade, bem como, também é um exemplo de como as deficiências cognitivas são criadas por esta mesma sociedade.