Economia do Amor - Ampliando o vocabulário sentimental

Tem uma cena de outro filme, Mentes Perigosas, em que a personagem da professora tem que convencer seus alunos a importância de estudar. Ela diz que amplia os horizontes, que aumenta os limites do mundo. Nossa, o que ela fala para os alunos é muito pertinente! Aprender uma palavra, por exemplo. Frequentemente pensamos em conceitos cuja palavra correspondente não existe (ou existe e não a conhecemos). Imagina se não existisse a palavra ‘lar’. Viveríamos tranquilamente. Vez por outra nos referiríamos ao “lugar onde você mora”. Poderíamos até, com muito esforço e muitas palavras (ou talvez através de alguma obra de arte) passar usar precisamente o conceito “lar”. Mas conhecer a palavra “lar” permite transmitir com muita precisão o conceito “lar”. Permite também que cada um de nós consiga manusear o conceito “lar” com muita facilidade. Podemos assim gerar pensamentos muito mais complexos ou mesmo entender com muito mais facilidade conceitos que outros criaram usando a palavra“lar”. É desta forma que aprender amplia o mundo: nos dando acesso ao que, de outro modo, não conceberíamos.

Mas o que é conhecer a palavra “lar”? Será que ao lermos as definições do dicionário e a explicação da wikipedia nós ja saberemos o que ‘lar’ significa? Enquanto ouvimos, lemos e pensamos o conceito atribuímos aos poucos um sentido a este conceito. Ele se torna cada vez mais acurado para a nossa perceção individual. Ampliar os horizontes do mundo se faz conhecendo palavras novas, mas também ao aprendermos teorias, ao aprendermos construções sintáticas e - claro - ao experimentar a arte. E é exatamente o que “A economia do amor” faz, amplia o nosso vocabulário sentimental.

Uma mãe (Marie) chega do trabalho meio mal humorada trazendo suas duas filhas gêmeas de uns sete anos. Ela tem que fazer comida, dar banho, fazer dever de casa… enfim, ela tem que ser mãe. Mas eis que chega o Boris: o pai simpático e bonachão. Carinhoso, ajuda a dar almoço, as meninas querem que ele lhes dê banho e que conte uma historinha para que durmam a noite. Maravilhoso, não é? Seria, caso ele não estivesse quebrando o acordo que fizeram, quarta feira é o dia de Marie com as meninas. Ele não tem a intenção, mas acaba roubando o tempo de qualidade que Marie teria com as filhas.

O casal já está separado quando o filme começa. Marie é apresentada como uma mulher tensa, magoada, uma pessoa desagradável de se assistir. Já Boris é apresentado como uma pessoa leve, alguém que torna a vida das crianças mais alegre, Boris é carinhoso com Marie e não quer se separar dela, é a presença carinhosa. Entretanto aos olhos de Marie, mesmo com todo amor que ele tem a oferecer, Boris é a pessoa insuportável que vive de favor em sua casa e às suas custas. Alguém sem compromisso com a vida. Aparece quando não deveria e sempre adia a promessa de comprar as chuteiras da filha. Marie acaba as comprando um dia antes do jogo. Para Marie tudo em Boris irrita, até o seu carinho.

Duas pessoas separadas, com desejos e visões diferentes vivendo sob o mesmo teto são como uma panela de pressão. O conflito se torna cada vez mais intenso e se dá de diversas maneiras. Uma das cenas de que mais gostei é a cena em que eles conflituam através das crianças: Eles acabaram de ter uma de suas brigas cheias de gritos. Sentam-se com as crianças explica sua versão. Claro que cada um defende o seu ponto de vista. São pais amorosos e não planejavam, mas é quase inevitável usar as crianças como amortecedor para suas relações. Na cena Marie não quer que as crianças passem um mês com a avó paterna. Ela justifica para uma amiga (ao telefone) que não quer ficar na casa sozinha com Boris.

À medida em que o carinho de Boris vai sendo rechaçado por Marie ele se torna a pessoa mais amarga do relacionamento. Em uma cena ela faz um jantar para os amigos na varanda. Um deles se compadece pelo jeito de “cachorro rejeitado” de Boris e o convida para jantar. Logo se arrepende, todos na mesa tentam persuadir Boris deixar o jantar. Entretanto Boris se sente à vontade com a situação, ele já está tão acostumado com passar o dia todo brigando com Marie que não liga de brigar com os amigos dela.

Só se sente desconfortável quando uma tenta conversar sobre o próprio Boris, momento em que ele finalmente sai da mesa.

A convivência era horrível, mas nem de toda desprovida de carinho. Em uma cena os pais jogam baralho com as meninas e começam a ouvir rock (para que mostrem a coreografia que fizeram). Claro que todo afeto começou através das filhas. Mas eles acabam transando após as porem para dormir. A cena mostra um carinho, um resquício de uma paixão que já queimou o coração de ambos. Mas termina com Marie dormindo na sala, ela tem tesão para transar, mas não se sente confortável para dormir ao lado de Boris.

Uma noite Boris leva uma surra por conta de suas dívidas. Marie pergunta quanto ele deve. No dia seguinte lhe dá o dinheiro para que quite suas dívidas. Mas pede que saia, não quer que as meninas o vejam todo machucado. Após este gesto de carinho Boris finalmente cede ao pedido. O filme praticamente todo se passa nesta casa. Só no finalzinho aparecem em um café. Ambos desfrutam amigavelmente a tarde. Enfim chegaram a um acordo quanto ao que cabe a Boris e de como compartilhar a guarda das crianças.

A resenha que fiz anteriormente - Os Miseráveis(1998): Protagonista, o antagonista do antagonista - fala de um filme que tem pressa. Cada cena mostra apenas o suficiente para a história se desenvolver ou para mostrar quem é cada personagem. É um filme que seria aprovado por qualquer manual de roteiro. É um filme cheio de causa e consequência, um fato leva a outro. Qualquer ação que não tenha muito impacto simplesmente é ignorada, até por isto o filme Os Miseráveis tem um monte de lapsos temporais bem grandes. ‘Economia do Amor’, por outro lado, é um filme que tem calma. Ele tem paciência. É um filme que sabe que cada nuance do relacionamento tratado tem seu sabor e sua complexidade e se ressente por ter que deixar de lado tantos pequenos fatos que simplesmente não caberiam em um filme comercial.

Como construímos o significado extremamente rico da palavra ‘lar’? A vivenciando. Mas existem outras maneiras de ampliar o horizonte, não apenas aumentando o vocabulário e estudando teoremas e teorias. Nem tudo cabe em palavras e números. A arte é o caminho para aprender algo que em letras é indizível. Mesmo se vivêssemos o que foi apresentado no filme poderíamos passar inertes às lições que a vida nos deu. Mas ao ver as mesmas lições na tela do cinema, sob o recorte dos artistas que criaram o filme (diretor, atores, roteirista, editor…) é mais fácil entendermos tais lições. De uma certa maneira nosso vocabulário emocional é um pouco enriquecido.

Economia do Amor (2016)

Diretor: Joachim Lafosse