A terrível decisão de Hikaru Shidou

A TERRÍVEL DECISÃO DE HIKARU SHIDOU

Miguel Carqueija

A saga “Magic Knight Rayearth”, criada no Japão em 1994 pelo quarteto feminino CLAMP, fez grande sucesso no mangá e logo em seguida no anime. Ganhou duas fases no seriado televisivo de animação e um OVA muito interessante. Na época foi considerada rival de Sailor Moon, porém não chegou à mesma longevidade. Permanece entretanto como uma das grandes criações recentes da fantasia heróica, tão grande quanto Sailor Moon, Lord of Rings, Harry Potter, Peter Pan, Star Wars e Utena.


Curiosamente, o enredo básico de Rayearth é espantosamente simples. A história tem início, para a Terra, no ano de 1994, num dia ensolarado em que três colégios femininos coincidentemente programam visitas de turmas à majestosa Torre de Tóquio. Três meninas, cada uma de um colégio, em dado momento estão próximas, no terraço da torre. São elas Hikaru Shidou, pequena, alegre e inocente; Fuu Hououji, doce e “zen”; e Umi Ryuuzaki, elegante, corajosa, algo temperamental. Não se conhecem ainda. Nesse momento uma luz resplandece no ambiente e lá fora, em pleno ar, surge a imagem de uma mulher muito jovem e de longos cabelos, que pronuncia estranhas palavras: “Por favor, salvem Cephiro: Guerreiras Mágicas, eu as convoco!”


A rigor a tradução é Cavaleiras Mágicas (Magic Knight). Logo em seguida as três meninas, todas com 14 anos, são arrebatadas nos ares, vendo-se aterrorizadas flutuando sobre um mundo estranho, onde montanhas levitam nas alturas. Quando vão caindo surge um peixe voador gigante que as apara e as leva a terra firme, onde as aguarda o bizarro Mago Cléf – que embora pareça um garoto já conta séculos de existência.

Cléf explica que elas foram convocadas magicamente pela Princesa Emerald (Esmeralda), o “Pilar de Cephiro”, para salvar aquele mundo da destruição. Emerald, com suas orações, mantinha em segurança e estabilidade aquele planeta, regido por leis mágicas, espirituais. Em Cephiro, explicava Cléf, tudo dependia da força do pensamento, do poder da fé e da oração. Entretanto o grão-sacerdote Zagato havia seqüestrado a princesa e a mantinha prisioneira, impedindo-a de exercer a sua função específica. Sem o Pilar para sustentá-lo aquele mundo estava se deteriorando rapidamente: monstros haviam surgido e se espalhado, semeando o terror; a paz que unia seres humanos, animais e entidades mágicas se evaporara. Assim, para cumprir antiqüíssima profecia, Emerald convocara as Cavaleiras Mágicas de outro mundo, já que ninguém de Cephiro mesmo teria capacidade para resolver a situação.


As meninas relutam, é lógico. Não possuíam poderes; e se os possuíssem, alega iradamente Umi, já teriam retornado a Tóquio. Mas os poderes delas eram latentes, e Cléf, com seu bastão de poder, faz com que despertem. Somente Hikaru, porém, que leva o assunto mais a sério e se entusiasma, consegue sentir a magia em seu interior. Cléf faz com que subam em um grifo e as despacha para a Floresta do Silêncio, ao encontro da ferreira Presea e do bichinho encantado Mokona, parecido com um coelho, que faz sempre “pú-pú!” e que tem uma espécie de farol e projetor na testa, para indicar o caminho a seguir. Presea lhes dará as armas mágicas que lhes serão necessárias. A retirada das meninas é urgente, pois Zagato já sabe, pelo espelho de água, que as guerreiras mágicas foram chamadas, e resolve matá-las o quanto antes, enviando para isso a feiticeira Alcyon.


Seguem-se inúmeras peripécias nas quais a amizade entre as três garotas vai se cimentando de uma maneira irreversível e comovente. A lealdade mútua suporta qualquer prova e cada uma delas está sempre disposta a tudo arrostar e a expor a própria vida para proteger as outras duas. Especialmente notável é Hikaru; mais de uma vez ela está ensangüentada, a ponto de o sangue escorrer para o chão, e enfrentando algum inimigo poderoso e se recusa a ceder; antes, com um esgar de cólera santa, ela prossegue lutando até a vitória. Uma das cenas antológicas é o seu primeiro contato direto com Zagato, quando Umi e Fuu estão fora de combate e ela própria sem a armadura mágica. Embora Zagato seja o adversário mais poderoso de todos – os demais foram derrotados ou convencidos a deixá-las em paz – Hikaru, com uma determinação quase incompreensível numa menina de 14 anos, exclama: “Não vou perder para alguém como você!”


Muitos personagens vão aparecendo ao longo da saga: o ambíguo Ferio, por quem Fuu se enamora recatadamente; o bruxinho Ascot, manipulador de monstros perigosíssimos; a ilusionista Caldina, sequiosa de dinheiro; a ferreira mágica Presea, por quem Hikaru dedica uma terna afeição; o guerreiro Lantis (irmão de Zagato) e diversos outros.


Entretanto, a primeira fase da aventura encaminha-se para o seu trágico e inesperado desfecho. As três garotas, através de uma longa jornada e muitos confrontos, acabam reavivando os três gênios (machins) de Cephiro, a saber Selece (relacionado com Umi e a água), Windam (com Fuu e o vento) e finalmente Rayearth, machin do fogo e vinculado a Hikaru. Os machins, embora a princípio se apresentem como um dragão, um pássaro e um leão com juba incandescente, são na verdade mechas, isto é, gigantescos robôs de combate. Penetrando magicamente em seu interior e incorporando-se neles, as Cavaleiras Mágicas (e aqui se explica melhor o título de cavaleiras) dirigem-se finalmente ao castelo encantado e flutuante onde Emerald jaz prisioneira. É o décimo-nono capítulo do anime, “O confronto final: as guerreiras mágicas contra Zagato”. A emoção se acumula, como se pode imaginar. Zagato espera as meninas dentro de seu próprio mecha, e com o grande poder que opera consegue a princípio levá-las de vencida. Mas elas se “recusam a perder” e contra-atacam com um feitiço combinado, levando Zagato à morte.


Pois bem. Chegamos ao ponto em que a saga se revela em todo o seu esplendor, superando de muito o clichê do “confronto final entre o bem e o mal”; clichê que, em verdade, pode também ser um arquétipo, um emblema, algo tão inerente ao imaginário que, a meu ver, terá sempre o favor do público. Mas aqui, apesar do título do décimo nono episódio, descobrimos que a missão das garotas transcende o embate com o suposto vilão principal, Zagato, até porque, até aqui, o seu verdadeiro propósito encontra-se envolto em mistério.


O primeiro arco da série chega ao seu final, ao seu clímax surpreendente, no capítulo intitulado “A inacreditável verdade sobre as Guerreiras Mágicas”. É quando as heroínas e seus machins penetram nas defesas do castelo flutuante e deparam com uma mulher de feições desconhecidas que se identifica como Emerald Hime (a Princesa Esmeralda na tradução brasileira) e que, entrando por sua vez num machin, começa a atacá-las. Seguem-se instantes de grande perplexidade. As guerreiras adolescentes lembram que a figura avistada na Torre de Tóquio (e posteriormente na Fonte Etérea) era a de uma garotinha. Parece a elas que a verdadeira princesa encontra-se em outro ponto do lugar; a mulher que as hostiliza afirma que elas mataram o seu “amado Zagato”, e que ela se vingará. Afinal, surge a figura por elas reconhecida como a Princesa Emerald, ou uma projeção mental da mesma, que lhes explica ser aquela mulher, o seu lado egoísta. Note-se que ao longo de toda a série Emerald pedira a Zagato que parasse com o que estava fazendo, e que iria levar o mundo à destruição; e Zagato, numa atitude incompreensível até para os seus aliados como Caldina, afirmara não se importar que Cephiro fosse destruído.


Mas Zagato – explica dolorosamente Emerald – não era culpado pelo que vinha acontecendo naquele planeta. A culpa era dela própria: como o Pilar, cabia-lhe a responsabilidade na manutenção de Cephiro como um mundo de paz e felicidade. As suas constantes orações sustentavam Cephiro, um lugar mantido pela força da Fé. Mas o Pilar se apaixonara pelo sumo sacerdote e, embora procurasse manter em segredo os próprios sentimentos, Zagato afinal percebera e correspondera. Mas, o Pilar não poderia unir-se a um homem, não deveria se distrair dos deveres. Emerald não conseguira mais manter a concentração de seus pensamentos em Cephiro; em conseqüência o orbe principiara a “desmoronar”, ou seja, a degenerar com o aparecimento de chusmas de monstros gerados pelo medo da população, em seguida com repetidos terremotos e com a ocorrência, até então desconhecida, de fortes tempestades. Zagato então raptou Emerald para impedir que ela chamasse as Cavaleiras Mágicas em cumprimento da antiga profecia.


As garotas já não sabem o que pensar. Afinal, se Zagato não era o culpado, o que elas deveriam fazer agora? “Por que nos convocou?”, pergunta Hikaru. E Emerald responde, revelando enfim a incrível verdade:


“Eu as convoquei para que vocês me matem.”


A terrificante revelação é agora explicada em detalhes pela amargurada regente de Cephiro. Quando o Pilar deixava de realizar suas funções, o mundo caminhava para a destruição. Surgia a necessidade de eleger um novo Pilar, mas o anterior deveria sair de cena. O Pilar não podia atentar contra a própria vida, e entre os habitantes de Cephiro nenhum seria capaz de matá-lo. Então, quando surgia uma tal crise, o Pilar convocava as Cavaleiras Mágicas de outro mundo, não sujeitas às mesmas limitações, para que matassem a quem as invocara.


Esta a verdadeira missão para a qual as meninas haviam sido chamadas da Terra: matar a quem elas pretendiam salvar. Elas relutam, horrorizadas; ainda tentam encontrar outra saída, mas Emerald mostra-se inflexível e insiste que nada mais poderá salvar Cephiro da derrocada. Para que o novo Pilar surja, é imprescindível que o anterior desapareça.


É então que a cena máxima das Magic Knight acontece. Pensando rapidamente, em alguns segundos a heróica Hikaru toma a mais importante decisão de sua curta vida: com um grito de guerra a menina guerreira impele seu machin para a frente, contra o machin de Emerald, e o trespassa, matando o Pilar de Cephiro. E com seu generoso heroísmo ela poupa, inclusive, as suas amigas Umi e Fuu, de mancharem também as mãos no sangue da princesa.


Imediatamente as três se vêem de volta à Torre de Tóquio (visão comum nos desenhos e quadrinhos japoneses) e pateticamente se abraçam, e a sábia e singela Hikaru vai logo dizendo que pretende retornar a Cephiro – afinal, o drama ficou mal solucionado, e os problemas daquele mundo não acabaram.


Assim termina o primeiro arco do seriado de animação das Cavaleiras Mágicas de Rayearth.


A segunda parte da série irá aprofundar a personalidade de Hikaru, que se destaca entre os demais personagens e suas próprias companheiras Fuu, delicada e gentil, com seu jeitinho de professora amável, e Umi, que a princípio parece muito irritável mas vai aos poucos demonstrando seu caráter profundo e bondoso. Hikaru porém não é somente uma heroína (ou super-heroína pelos padrões dos comics da Marvel e DC), ou apenas uma aventureira mágica; é uma Messias, uma predestinada. Ela está destinada a se tornar o novo Pilar de Cephiro, salvando aquele mundo em definitivo. O simbolismo está presente mesmo nos nomes: Hikaru quer dizer Luz (na tradução brasileira ela ficou conhecida como Lucy) e o seu gênio é Rayearth, palavra composta que pode ser traduzida como Luz da Terra. E isto, em última análise, define a Hikaru: ela é a luz que vem da Terra, a iluminada que salvará Cephiro movida pela sua vontade reta e decidida. É muito raro encontrar personagens de ficção tão edificantes. Na verdade pode-se constatar que os mangás e animes trabalham algumas vezes com os conceitos da santidade e do messianismo, olvidados pelo imaginário ocidental. Mas, fato às vezes esquecido, Jesus Cristo surgiu na Palestina, ou seja, não no Ocidente mas na Porta do Oriente. São, de fato, reconhecíveis as referências a Cristo na pessoa de Hikaru: a bondade, a missão sagrada, o desprendimento da própria vida, a ferrenha amizade por Fuu e Umi e a sua lealdade para com os amigos e sua fidelidade às promessas e aos princípios morais que a norteiam. Enfim, a força moral de Hikaru é tão grande que só pode ser explicada pela santidade, ou seja, a virtude da união íntima com Deus.


De passagem, observo que desde o princípio da saga o diálogo das três meninas se mostra invulgarmente elevado, muito diferente – sem ser empolado – daquilo que geralmente percebemos nos adolescentes. E não somente as palavras mas os gestos, as atitudes, denotam não apenas a elevação de caráter das garotas mas também a delicadeza de maneiras no trato mútuo, recheado de carinho e afeto, e no trato com os demais e mesmo com os animais. O relacionamento entre Hikaru, Fuu e Umi, é profundamente amoroso, entretanto não apresenta conotações lésbicas: todas elas são sensíveis ao sexo oposto e cada uma delas vem a se enamorar (termo mais apropriado que “apaixonar” tendo em vista a singeleza de seus sentimentos): Fuu por Ferio, Umi por Ascot (depois que ele se regenera e dá um jeito de crescer) e Hikaru pelo espadachim Lantis. Umi é tão gentil em seu amor por Ferio que chega às lágrimas silenciosas; já Hikaru, ao conhecer Lantis – que regressara de seu auto-exílio após a morte de Emerald – ao saber que se tratava do irmão de Zagato, tem com ele uma cena patética. Admite que havia morto Zagato (Lantis não tocara no assunto) e acrescenta: -Pode me bater, mas por favor, não faça nada com Umi e Fuu.


Mas Lantis não estava interessado em vingança e responde: - Vocês não devem se culpar.


Tudo irá caminhar para o entendimento geral pois, como personagem messiânica, Hikaru transforma as coisas pelo amor. Quando porém for revelada a sua condição de novo Pilar, ela diferirá de Emerald nos métodos. Para Hikaru, o Pilar não deve se isolar da sociedade e se privar de tudo: ela passa a viver em dois mundos, passando tempos na Terra ou em Cephiro, e o mundo mágico mesmo assim recupera a sua estabilidade, o seu antigo viço. Esta é a solução do mangá; na solução do anime, Hikaru simplesmente libera Cephiro do encanto que faz do planeta dependente de um pilar.


Toda a história é como um hino à inocência, ao propor que uma menina tão simples como Hikaru venha a se tornar tão importante; e a saga se desenrola como uma sinfonia onde as emoções, os sentimentos, os princípios éticos, pesam mais que a ação e a violência. A exemplaridade da criação de Mokona Apapa, Satsuki Igarashi, Ageha Ohkawa e Tsubaki Nekoi transparece em cenas memoráveis como a longa seqüência do episódio 14 (O obstinado desejo de Hikaru, Umi e Fuu), onde Hikaru, premida pela determinação de cumprir sua promessa de lealdade, corre em meio ao bosque de espinheiros, ignorando os cortes que recebe, e se ensangüenta mais ainda ao cair numa cova e lutar para galgá-la, suportando estoicamente o derramar de seu próprio sangue sem esmorecer na decisão de salvar Umi e Fuu, então em grande perigo.


É muito especial uma amizade que, recente ainda, torna-se forte até a morte, gerando laços sólidos e indestrutíveis. Os gestos de ternura entre as três meninas – que só se tornam guerreiras por amor à justiça – estendem-se também para Cléf, Mokona, Presea e outros personagens. No fundo, “Cavaleiras Mágicas de Rayearth” é uma história sobre o poder do amor, da bondade e da inocência, narrada com um intenso dinamismo e vigor emocional, e onde se demonstra que o Mal, por mais poderoso que pareça, não é importante. É também uma história que fala de adolescentes cuja candura não as impede de serem surpreendentemente amadurecidas e responsáveis – numa mensagem construtiva que contrasta com a vacuidade da maioria do que se vê nos dias de hoje.