A constituição da disciplina de Língua Portuguesa no Brasil: por que os professores perderam suas tomadas de decisão paradigmatizadas em sala de aula?

Magda Soares, nos textos Português na escola/História de uma disciplina curricular (1996) e O livro didático como fonte para a história da leitura e da formação do professor-leitor (2001) tece considerações acerca da constituição disciplinar da Língua Portuguesa no Brasil. Essa resenha tem por objetivo fazer um levantamento desse aspecto (a constituição disciplinar da Língua Portuguesa em contexto educacional no Brasil) ao longo da história, verificando suas transformações em termos de escolarização, destacando a desterritorialização da autonomia docente em planejar e em desenvolver suas aulas.

Quando da instrumentalização de certo conhecimento forma-se uma disciplina, e é no espaço escolar que se corporifica o ensino de dada disciplina em um aspecto mais resolutivo, isto é, elencam-se prioridades de certos conhecimentos e a maneira como se dará a aprendizagem dos mesmos.

A partir do momento em que o ensino e a aprendizagem são burocratizados, isto é, quando o ensino, de individuado passa a ser coletivo, aloca-se um espaço único e uma temporização específica, ambos controlados e definidos pela organização curricular. A organização curricular cria e elabora objetivos específicos de cada disciplina, uma vez que seleciona conhecimentos básicos de uma determinada área da herança cultural humana, sistematizando-a, isto é, a educação escolar sanciona o que deve ser estudado e o que não deve ser estudado dentro de cada ciência produzida pela humanidade ao longo do tempo. Outrossim, a escolarização, disciplinariza não somente os conteúdos do conhecimento, o espaço e o tempo para tais, mas também, os sujeitos do aprendizado.

No Brasil colonial, a Língua Portuguesa coexistia com outras duas línguas: a Língua Geral (línguas indígenas existentes no território brasileiro) e a Língua Latina (língua para o Ensino Secundário e Superior), de modo que ela era apenas instrumento para a alfabetização. A Gramática como sistematização normativa e a Retórica como produção de discursos bem elaborados eram os conteúdos prevalecentes no ensino de Língua Portuguesa do século XVI ao século XIX.

Durante o século XIX, à Gramática e à Retórica instituiu-se o ensino da Poética (Literatura). É a partir dos anos 1950 que o conteúdo da disciplina Português reformula-se, pois o acesso à escola fora facilitado para as camadas menos privilegiadas da sociedade. Esse acesso das “massas” (consideradas incultas) decorre de um processo de redemocratização governamental, que corrobora para o surgimento de novas funções e objetivos para a instituição escolar brasileira.

Pode-se validar então que, o ensino de Língua Portuguesa, inicialmente era tratado como expressão estética, uma vez que o primordial era o ensino da Retórica e da Poética, em seguida, esse mesmo ensino é tratado, tão somente como estudo do texto, para a aproximação do aluno aos textos clássicos por meio da tradução. Nos anos de 1970, com o governo militar instaurado, os objetivos e a ideologia desse regime transformam mais uma vez as concepções de ensino de Língua Portuguesa. Nesse período, a Língua Portuguesa era vista como movimento expressivo para a comunicação, haja vista a Teoria da Comunicação de Jakobson (2007). O esquema comunicacional elaborado pela Teoria da Comunicação serviu como base para que Jakobson estabelecesse que cada componente de um ato de comunicação corresponde a uma função da linguagem (expressiva, conativa, fática, metalinguística, referencial e poética). As funções da linguagem, de Jakobson, são objeto de muitas críticas, por serem consideradas um modelo incompleto, na medida em que tomam a linguagem como um código de mensagens pré-estabelecidas a serem decodificadas.

Por que dessa concepção nova de língua? Magda Soares esclarece-nos desde o início do primeiro texto que as respostas estão erigidas numa perspectiva histórica externa que nos dará o entendimento interno desse questionamento. A educação dos anos 1970 estava voltada para as camadas populares em processo de escolarização, advento concomitante a um ideal de ensino tecnicista, ou seja, visado para a inserção do alunado no campo do trabalho. Depreende-se desse fato social a nova concepção de língua, uma vez que, a língua fora tratada como entendimento dos códigos presentes no cotidiano, propulsora de comunicabilidade, em face do aparato tecnicista da educação vigente.

É também, a partir dos anos 1970 que os livros didáticos controlam com maior força a aprendizagem segundo concepções de língua que se vão apresentando. Mais uma vez, a autora vale-se da historicidade para formular suas análises no que diz respeito às habilidades de leitura (professor-leitor, aluno-leitor) nos livros didáticos.

O professor, ao longo do tempo, é considerado cada vez menos apto a assumir autonomamente a ação docente. Essa assertiva é de influxo continuado, já que atualmente, a situação educacional do país se revela insatisfatória. Há então, de se pensar quais foram as determinantes dessa situação. Tendo como modelo de análise os livros Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, e Estudo dirigido de Português, de Reinaldo Mathias Ferreira, Magda Soares considera as concepções de professor-leitor segundo um movimento transformacional.

Na Antologia Nacional, livro em que se objetivava o estudo sob o domínio do texto, a aprendizagem aliava conhecimento de literatura e de aprendizagem da língua (aqui, aprendida como sistema mais ou menos uniforme, em que se normatizam regras, tendo um padrão único de língua; em suma, uma perspectiva saussureana de língua).

Por conseguinte, o professor de língua Portuguesa desse período (1895 a 1969), que fazia uso da Antologia Nacional, estava familiarizado com as literaturas portuguesa e brasileira e possuía domínio da língua vigente e das modalidades passadas. Esse mesmo professor tinha, pois, aporte suficiente do que deveria ensinar, e autonomia tamanha que lhe bastasse para ensinar leitura, literatura, gramática e estudo geral da língua. A Antologia Nacional não apresentava exercícios ou sugeria atividades. Dessa afirmativa pode-se concluir que cabia ao professor ter posse arbitrária do desenvolvimento dos conhecimentos durante as aulas, o que lhe dava liberdade de planejamento e execução das aulas de Português.

Com a democratização do ensino, a situação de ensino-aprendizagem exigiu modelação diversa da anterior, uma vez que crescera o número de alunos e professores. Em Estudo dirigido de Português, tem-se então, já desencadeada, certa automatização da aprendizagem. O livro didático adquire feição bem mais metodológica do que a função de professor, ou seja, o livro didático orientava a ação do professor, escolhendo os modos como esse deveria ensinar determinados conteúdos. A esse respeito cabe salientar que, a Teoria Holística da Atividade (RICHTER, 2011) considera que a diferenciação básica do profissional docente são as suas tomadas de decisão paradigmatizadas, isto é, cabe ao professor criar, elaborar e desenvolver suas metodologias de ensino de acordo com o contexto de determinada clientela (turma de educandos). Essas tomadas de decisão paradigmatizadas são uma bifurcação de dois elementos: primeiro, o professor tem de se valer de seu saber-sobre (nível teórico-conceitual) e segundo, de seu saber-como (nível de escolhas individuais e criativas). O saber-sobre e o saber-como estão sob o jugo de um enquadramento de trabalho docente, isto é, o professor elaborará suas metodologias de ensino a partir das abordagens de ensino linguoliterário e de educação que adotar. Mesmo suas escolhas individuais e criativas devem estar alinhadas às abordagens de enquadramento de seu trabalho como docente.

A partir de 1970, depois da democratização do ensino (1950), a prática docente começa a ser orientada pelos livros didáticos, que regularizam a processo de ensino, fato perceptível, já que esses mesmos livros orientam a compreensão dos textos. O que seria um auxílio aos docentes, passa a ser quesito principal para o ensino. É então que o professor é tachado como um mau leitor, um conhecedor insuficiente dos estudos da língua e da literatura, considerado também, sem formação suficiente em termos de planejamento individualizado de aulas.

E, atualmente, no século XXI, será que as novas correntes linguísticas, sobretudo as socioconstrutivistas (BAKHTIN, 1999), as que tomam a linguagem como interação, o estudo dos gêneros discursivos e o estudo da língua em uso, satisfazem de todo a gama de noções elementares do estudo de língua? Seria mais condizente com a situação que se encontra o aluno brasileiro ensinar a sistematização da língua, ou a comunicação, ou as relações da língua em uso, ou a materialidade da língua num contexto mais particularizado?

Destarte, destaca-se a guisa de conclusão que, acredita-se que os docentes da Educação Básica, educadores linguoliterários, devem partir de um estudo heterogêneo da língua (trabalho com artefatos linguísticos das socioculturabilidades dos educandos de dada turma) para que ocorra, posteriormente, um processo de universalização (aprendizado global da língua como sistema e como práxis). Acredita-se que assim, os resultados de aprendizagem linguística seriam mais satisfatórios para o axioma central da Educação: interrelação entre formação pedagógica e formação humana.

Referencial bibliográfico:

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 15. ed. São Paulo: Hucitec. 1999.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2007.

RICHTER, Marcos Gustavo. Profissionalização docente segundo a teoria holística da atividade: estudo empregando software de mapeamento semântico. In: MOTTA, Vaima Alves; LEÃO, Rosaura Albuquerque (Orgs.). Linguagem e Interação: O ensino em pauta. São Carlos: Pedro e João Editores, 2011, p. 109-140.

SOARES, Magda. Português na escola: história de uma disciplina curricular. Material de divulgação da obra Português através de textos. São Paulo: Moderna, 1996.

SOARES, Magda. O livro didático como fonte para a história da leitura e da formação do professor-leitor. In: MARINHO, Marildes (Org.). Ler e Navegar: espaços e percursos de leitura. Campinas, SP: Mercado das Letras. Belo Horizonte, MG: Ceale, 2001.