Um encontro insólito

UM ENCONTRO INSÓLITO

Caminhavam os dois pela Avenida Paulista, só que um em sentido contrário ao outro.

O homem que ia em direção à Rua Augusta, de tez morena, alto – algo em torno de 1,87m – estava muito bem vestido num elegante terno de linho branco – coisa difícil de encontrar hoje em São Paulo – gravata de listras azuis e brancas, chapéu de feltro cinzento claro dando para se perceber, por baixo do chapéu e por cima das orelhas, um cabelo totalmente branco, sapatos pretos bem engraxados, muito bem barbeado denotando, todavia no rosto, um certo ar de preocupação.

O que vinha no sentido contrário, ao contrário, vestia um terno preto já bastante surrado, desbotado nos ombros e nas costas, uma gravata de cor vermelha muito forte com finas listas exageradamente amarelas. Sua cabeça estava envolta por um lenço vermelho que descia até cobrir as sobrancelhas, com um nó e um rabicho na parte de trás da cabeça – lembrando os lenços usados pelos ciganos – e, por cima, um avelhuscado chapéu preto. Os sapatos, além de velhos e deixando à mostra alguns rasgos, estavam enlameados, sendo difícil se identificar a sua cor original e, estranhamente, aparentavam ser bem pequenos para uma pessoa da sua altura embora não se tratasse de um homem muito alto. Podia se dizer que era em torno de 1,65/1,70m. O seu rosto era bastante vermelho, a barba se percebia que estava por fazer já há alguns dias e, apesar do tempo quente que estava fazendo, pois era pleno verão, o cidadão usava luvas de couro preto e trazia, dobrada no braço, uma capa bem grossa, própria para os dias muito frios.

Ambos iam bem distraídos, no entanto, se um deles, apesar de seu ar preocupado, aparentava estar de bem com a vida, não se poderia dizer o mesmo do outro, já que resmungava o tempo todo, extravasando um flagrante mau humor.

E tão distraídos estavam que, mesmo com a calçada vazia, sem perceberem, tocaram-se levemente ao se cruzarem.

Quase que imediatamente o homem de terno branco virou-se para o outro – que já se adiantara na sua caminhada – e pediu desculpas, não tendo havido nenhuma recíproca. Imediatamente ele insistiu no seu pedido de desculpas jogando com a possibilidade do outro homem não ter escutado da primeira vez.

Este então, demonstrando ser possuidor de uma péssima educação, além do mau humor que exalava por todos os poros, virou-se para o seu interlocutor e, grosseiramente, lhe disse:

- Você já não havia pedido desculpas uma vez? Então por que pediu pela segunda vez? Ora bolas.

Delicadamente foi interpelado pelo senhor de branco.

- Queira me desculpar pela insistência, pois pensei que talvez o cavalheiro não houvesse escutado, e se escutou não respondeu ou eu não ouvi.

- Não respondi por que não quis e não tinha nenhuma obrigação de fazê-lo – respondeu-lhe rispidamente o homem de terno escuro e acrescentou: – E nem sei por que estou lhe dando satisfação, ora bolas.

O homem de terno branco, vendo que não iria adiantar nada continuar interpelando aquele mal educado, olhou-o bem na cara e disse:

- Desculpe-me mais uma vez e passe bem.

- Passe bem por quê? Por acaso estou com a cara de quem não está bem?

O outro homem já havia se virado para seguir o seu caminho, tornou a voltar-se em direção do seu interlocutor e disse-lhe:

- Meu amigo; Não pense que vai estragar o meu passeio por esta agradável avenida com a sua maneira deselegante e desagradável de falar e se dirigir a mim, porque tal não vai acontecer.

Virou-se em seguida para seguir o seu caminho, no entanto, para sua surpresa, ouviu o outro dizer de uma maneira bem mais calma e ponderada do que a usada até então.

- Interessante. Poderia jurar que o conheço de algum lugar.

Imediatamente virou-se e disse:

- Olha, agora que o senhor lembrou, algo igualmente me diz que também o conheço. O seu rosto não me é estranho.

Aproximaram-se um do outro e quando estavam bem perto.

- Não. Não é possível. Não acredito no que estou vendo. O senhor por acaso não é...?

- Sou sim. E você por acaso não é...?

Sou eu mesmo Mestre. E o que o senhor está fazendo aqui a uma hora dessas?

Ora Lú, estou passeando. E você?

- O Senhor me chamou de Lú. Há quantos milhões de séculos não ouço alguém me chamar assim. Chegou até a me arrepiar. Bem, respondendo à sua pergunta, lhe diria que estou aqui a negócios.

- E o senhor? O que faz por estas plagas?

- Ah, meu caro, se fosse lhe responder levaria tanto tempo que apesar de sermos quem somos, iríamos até nos cansar. Portanto, acho melhor procurarmos um lugar onde possamos nos sentar e aí então conversaremos à vontade. Combinado?

- Claro Mestre. Aqui bem perto tem um bar. Vamos até lá onde sentaremos e, enquanto bebemos algo para minorar este calor, conversaremos.

- É uma boa ideia. Vamos até lá.

Dirigiram-se ao bar mais próximo, procuraram uma mesinha com duas cadeiras meio escondida na parte mais interna e sentaram-se.

O mal vestido propôs tomarem um copo de chopp, mas o seu interlocutor, de maneira delicada e revelando o recato próprio da sua pessoa, não aceitou.

- Ora Lú, não fica bem eu bebendo uma bebida alcoólica, você não acha?

- Mas quem aqui sabe quem é o senhor? Quem sabe quem eu sou? Vamos Mestre, aproveite um pouco da sua estada aqui nesta terra.

- Acho até engraçado, respondeu o primeiro, você me incitando e tentando para que eu erre. Realmente você tem razão, ninguém sabe quem nós somos, mas o pessoal lá em cima está muito preocupado comigo e me vigia a cada minuto que passo aqui neste planeta. Não. Não vou cair em tentação, muito embora com esse calor, não tire a sua razão em sorver um copo dessa delícia bem gelada.

O outro riu da observação feita, primeiro sobre a tentação e segundo por causa dele haver admitido que o chopp bem gelado fosse uma delícia e perguntou-lhe.

- O senhor então sabe muito bem que jamais passaria pela minha cabeça colocar o senhor em tentação.

- Lú, veja bem com quem você está falando, disse o outro com ar zombeteiro. Sei muito bem o que se passa em sua cabeça.

Aquele, se já estava vermelho pela sua própria natureza e pelo calor que fazia, baixou a cabeça mais vermelha ainda, agora de vergonha por haver tentado enganar ao seu amigo.

- O senhor tem razão, foi muita pretensão da minha parte tentar induzi-lo a erro.

Ficaram alguns segundos em silêncio e então o primeiro perguntou:

- Então peço um refrigerante para o senhor? Qual o senhor vai querer?

- Não Lú. Acho que vou ficar com aquilo que foi muito bem criada e é essencial para a vida humana. Por favor, peça para mim uma garrafinha de água mineral.

- Garçom, garçom, chamou o primeiro. Por favor: Um chopp estupidamente gelado e uma garrafa de água com um copo aqui para este senhor.

Pela hora o movimento no bar era muito pequeno, de forma que o garçom não demorou em trazer o que haviam pedido.

Após sorverem um gostoso gole – um da água e o outro do chopp – o cavalheiro de branco virando-se para olhar de onde vinha o som de uma música rap que tocava bem alto, virou-se para o seu companheiro de mesa e disse-lhe.

-Tenha a santa paciência, mas essa música que está tocando é uma coisa horrível. Como existe alguém que goste disso. Parece mais alguém batendo com um martelo em cima de alguma coisa. Tum tum. Tum tum!

- O senhor tem toda razão. Lá onde eu trabalho toca isso o tempo todo. Isso, música sertaneja, pagode e axé. Foi uma das maneiras que encontramos para dar as boas vindas aos recém-chegados daqui deste país. Desta forma, logo na entrada eles já veem o que os espera por toda a eternidade. O senhor haverá de convir comigo que é uma boa recepção para quem vai para lá, não é mesmo?

- Não sabia que você, além de castigador, também era sádico Lú. Com quem você aprendeu isso?

- Bem, eu aprendi...

O senhor o interrompeu logo já sabendo o que ele iria dizer e procurou desviar um pouco a conversa do sentido que ela estava indo.

- E qual é a reação inicial desses pobres coitados com essa recepção?

- É a pior possível. Manifestações como “desliga essa porcaria”, aqui também?”, “O que é que eu fiz para merecer este castigo?”, etc.

O senhor de branco não deixou que o seu interlocutor continuasse e logo adiantou.

- Vamos então mudar isso, ao menos enquanto estivermos aqui.

- Mas, as pessoas que estão aqui vão estranhar uma mudança tão brusca, tão repentina.

- Nem tanto assim. Vou dar um jeito nisso também.

Dizendo isso, simplesmente dirigiu o seu olhar para a máquina de onde saía a tal música e, subitamente cessou aquele bate-bate horrível e começou a tocar uma música que de tão bonita mais parecia uma música celestial.

- Ah! Exclamou o segundo – O concerto para piano de Grieg1, uma das suas preferidas. Magnífica mudança Mestre. Resta saber a reação desse povo beócio que não gosta da boa música.

- Mas, a partir de agora vai gostar.

A música nem bem começou a tocar e já atraiu a atenção dos que já estavam sentados nas mesas bem como dos transeuntes que estavam passando pelo local e que, imediatamente começaram a parar sentando-se nas poucas mesas que ainda restavam disponíveis. A verdade é que nos rostos das pessoas a expressão era de felicidade, de alegria, de relaxamento e de envolvimento com a belíssima música que tocava. De repente toda a calçada em frente ao café estava tomada por uma verdadeira multidão silenciosa e com o mesmo ar de felicidade dos que já se encontravam no local.2

Ele estava feliz com o resultado que se havia operado naquela multidão. Em seguida voltou-se para seu companheiro e observou que aquele se achava com os olhos fechados enlevando-se com a música que tocava e então resolveu deliciar-se daquele agradável momento ele também e adiar um pouco a retomada da conversa.

Após este breve lapso de tempo, o indivíduo maltrapilho tomou a iniciativa de prosseguir com a conversa puxando, como assunto, o castigo que havia sofrido outrora por um erro que teria cometido quando ainda era um Querubim.

- Mas você há de convir comigo que traiu a minha confiança e no momento em que assim o fez, transformou completamente a vida do homem que Eu havia criado. Quando digo “homem” quero me referir não ao sexo, mas, sim, à espécie.

- Mas por que o meu crime foi tão grave assim?

- Você sabia muito bem que, ao conceber o macho e logo em seguida a fêmea, eu havia previsto, para esta espécie, um tipo de procriação completamente diferente da que existe atualmente.

- Me lembro muito vagamente Mestre, afinal já lá se vão quantos milênios que ele foi criado. Mas, como era mesmo?

- Você sabe como eu estive aqui encarnado na pessoa de meu filho dileto não sabe?

- Sim, sei muito bem.

- Vim para salvar o homem que estava em pecado graças a você, mas o próprio homem não acreditou nas minhas palavras de forma que nada mais me restava fazer e assim me deixei crucificar numa última tentativa de que isso servisse de exemplo para os homens. Tudo isso porque você os havia colocado em pecado. Por que então você me pergunta se o seu crime foi tão grava assim?

- Senhor! Se eu soubesse que aquilo que fiz daria nisso, jamais teria cometido tal ato que, sei muito bem, foi contra a sua vontade, o seu desejo. Triste e muito arrependido, peço o seu perdão, porque hoje vejo a que ponto eu interferi na evolução do homem.

- Então. Quando me encarnei no ventre de Maria Santíssima, o fiz da maneira que deveria ter sido desde o início dos tempos. Assim seriam todos os demais seres humanos só que sem a minha interferência direta. Pois bem, a partir do momento em que você, traindo a confiança que Eu havia depositado em você, libertou o sexo na mulher despertando-lhe o desejo e o prazer, não pude mais voltar atrás e, desta forma tive que refazer o homem fazendo com que ele também tivesse despertado a sua libido e, assim, pudesse satisfazer a mulher e, dessa maneira, ocorresse a procriação da espécie humana e para compensar o sacrifício de ambos Eu lhes concedi o direito ao “orgasmus”.

- Mas Mestre, ao criar o homem o senhor o fez com tanto carinho, com tanto cuidado, então, pergunto: Como surgiu isto que se vê por aí? Alguns são até verdadeiros monstros de feiura, de brutalidade. Mas a mulher não. Ao cria-la o Senhor superou todas as suas obras. A mulher é a mais perfeita, a mais bela, a mais maravilhosa de todas as suas criações. Nem as belezas da vida e da natureza se comparam à beleza e a perfeição das formas de uma mulher; nem a perfeição do universo se compara à perfeição dos traços e das medidas da mulher. Como poderia eu então resistir a tamanha tentação? Resistir a tanta beleza? Ainda mais que tendo tudo ocorrido quando da criação de tudo e estando o Senhor tão ocupado naquela época, jamais imaginei que fosse ligar para um fato tão insignificante, nem que este meu ato fosse despertar tamanha reação na mulher e, além do mais, trazer tão graves consequências ao seu desejo inicial.

- Ah Lú! Como você foi infantil ao pensar que algo passaria despercebido para mim. Na verdade Eu já havia desconfiado daquelas suas constantes viagens a este planeta. Certa vez, somente para testar, designei outro Querubim para que viesse em seu lugar e você achou um motivo para trocar com ele na última hora. Lembra-se disto? E ainda mais, tudo que Eu já sabia, também foi trazido ao meu conhecimento por alguns arcanjos muito ligados a você.

- Mas... Quem por exemplo?

- O Gabriel. Antes de designar você para fazer aquelas inspeções, já havia mandado o Gabriel, o Miguel e o Rafael fazê-las e eles, na iminência de sucumbir diante de tamanha e provocante beleza, diante de tão perfeita obra, puseram-se de joelhos diante de Mim e pediram-Me que não mais os mandasse fazer aquele serviço, pois corriam o risco de sucumbir diante dela.

Ouvindo isso, Lúcifer exclamou admirado.

- Gabi, o Miguel e o Rafa? E escondendo o rosto com a mão murmurou entre os dentes: - Aqueles três broxas ainda me pagam.

Apesar de murmurar quase que imperceptivelmente, Lúcifer esqueceu-se de quem estava diante dele.

- Lú! Não fale assim deles. Você sabe que eles gostavam muito de você e que, quando tomaram conhecimento do seu castigo, tentaram até interceder junto a Mim, por você. Quanta ingratidão.

- Mestre todo poderoso, me perdoe pelo que eu disse. Mais uma vez agi intempestivamente, me deixei levar pelo pecado da raiva. Os três eram realmente muito amigos meus. Costumávamos até a nos ajudar mutuamente nas tarefas que o Senhor nos passava no princípio de tudo. Perdoe-me desta vez e quando estiver com eles, se achar conveniente, dê-lhes um abraço que mando.

- Vamos fazer de conta então que não ouvi a sua observação.

- Então Mestre. Não diria que o Senhor errou, porque Deus todo poderoso é infalível, mas apenas diria que o Senhor foi muito rigoroso na penalidade que me foi imposta e...

Nisso Deus fez um pequeno aceno a mão interrompendo-o e, olhando para o aparelho de som fez com que a música que acabara de tocar fosse imediatamente substituída por outra tão linda e suave quanto a anterior.

- Nem tinha me dado conta que a música havia terminado. Engraçado como as coisas bonitas acabam rápido não é Mestre?

- É verdade Lú, mas esta que está começando agora é tão linda quanto a primeira. É o concerto nº 2 de Rachmaninoff3 para piano.

- O senhor não acha que está prendendo este povo aqui demasiadamente? Afinal já começa a escurecer.

- Só mais este concerto e Eu os liberarei para irem para suas casas.

- Então, eu dizia que apenas achei o castigo um pouco rigoroso Mestre, mas o senhor quis assim, assim foi feito e assim será.

- Me diga uma coisa? Perguntou Deus. - Como estão se portando os outros que foram com você naquela ocasião?

- Vão bem. Trabalhando feito cão, mas não se queixam. Eu bem que disse a eles naquela ocasião. Vocês são loucos em me apoiar e tentar uma rebelião contra o todo poderoso? Não veem que isso é uma deslavada loucura? Mas eles não me ouviram e o resultado está aí. Estão todos lá trabalhando mais na área administrativa do que na área braçal.

- Mas, voltando ao assunto de estarmos aqui sentados um em frente ao outro. O que lhe traz aqui à terra Lú?

- Bem Mestre, na verdade a minha vinda aqui se prende a um único motivo.

- E pode-se saber qual é?

- Segundo levantamento que foi feito pelo nosso departamento de estatística nos últimos tempos, que correspondem a cerca de cinquenta anos terrestres, o fluxo de entrada de pessoas lá no inferno aumentou consideravelmente, numa absurda base de 500% em comparação a igual período anterior. É muita coisa Mestre. É muito trabalho para tão poucos funcionários. O negócio chegou a um ponto que estou pegando gente que cometeu faltas, ou pecados, como queira, que consideramos menores em relação aos demais e os colocamos na parte administrativa, não deixando, contudo, de aplicar-lhes algum castigo periodicamente, para que se lembrem bem de onde estão, enquanto que o meu pessoal eu os coloquei para fazer serviços mais condizentes em outros locais.

- E que castigos são esses que você aplica naqueles que, segundo você, cometeram erros ou pecados menores na terra?

- Bem, Mestre, aqueles métodos antigos de castigo como o banho de óleo fervendo, arrancar todos os dentes sem anestesia, arrancar as unhas de todos os dedos, uma a uma, estão aos poucos sendo substituídos por métodos mais modernos, mas tão duros – ou até piores – do que aqueles.

- Como por exemplo? Perguntou Deus.

- Bem, permita o Mestre que eu me alongue um pouco, pois é necessário. Quando o humano nos é entregue pelo anjo transportador a sua ficha já chega às mãos da recepção quase que instantaneamente e, desta forma, nós vemos para onde mandar variando de acordo com a parte da terra eles proveem. Geralmente aplicamos penas que lhe tragam más recordações dos locais da sua origem. Para os oriundos daqui, por exemplo, os colocamos para ficar um fim de semana inteiro no estádio de futebol assistindo o jogo da seleção deles contra a seleção da Alemanha pela última copa do mundo. Para os que não conseguiram entrar no estádio nós os colocamos diante da TV assistindo esse mesmo jogo. Para outros os colocamos o domingo inteiro assistindo o programa do Silvio Santos ou se o castigo é um pouco mais brando os colocamos assistindo o programa do Faustão e...

- Mas este último programa é tão ruim quanto o primeiro, por que você diz “castigo mais brando”?

- Porque esse segundo programa não é o dia inteiro. O Mestre entendeu?

Depois de esboçar um leve sorriso, Deus disse: - Sim, sim, continue.

- Então, como eu dizia, tem também o castigo do domingo alegre que consiste em colocar os metidos a intelectuais passando um dia inteiro no campo, cheio de pernilongos, alguns gambás, formigas daquelas lava-pé, além de outras coisas, assistindo um show de música sertaneja com esses cantores de vozes indefinidas – ora é masculina, ora é feminina. É bom esse. Eu quando o assisto, morro de rir com as caras do pessoal quando começa a música, dando tapa na própria cara por causa dos mosquitos, tampando os ouvidos e pulando de um lugar para outro por causa das formigas. Com a mesma frequência, colocamos outro grupo ouvindo música axé o dia inteiro debaixo de um sol escaldante e, como no carnaval, todos suando e sendo empurrados uns pelos outros. Temos ainda, para aqueles que sempre tiveram do bom e do melhor, que nunca pegaram uma fila do SUS ou do INPS e que sempre fecharam os olhos para a pobreza e a miséria do povo causadas por eles mesmos, os colocamos um dia inteiro, debaixo de frio e chuva, numa fila do INPS esperando para marcar uma consulta e quando conseguem, a consulta é marcada somente para dentro de um ano e aí ele pega outra fila para atendimento pelo médico do SUS e depois de vários dias debaixo da mesma chuva e do mesmo frio, é atendido por um médico cubano que diagnostica que ele está apenas com um pequeno reumatismo, mas pede alguns exames que são marcados somente para dentro de um ano. Quando os exames são realizados, não precisa dizer que o seu estado físico é deplorável, o diagnóstico é de câncer em fase terminal e que necessita voltar no médico com urgência, mas só existe vaga para atendimento dentro de 6 meses e mesmo assim porque o seu caso é urgente. Quando finalmente é atendido novamente pelo médico cubano, já de cadeira de rodas porque já não pode nem andar de tão fraco, esse confirma o diagnóstico anterior de reumatismo e diz que os exames estão vencidos e que, portanto, precisa de novos, mas ele somente consegue marcar para dentro de um ano porque a fila é grande, e por aí vai.

- Mas esse tempo de um ano para vocês, como para nós lá em cima, corresponde a uma fração de segundo, então...

- Sabia que o senhor ia tocar neste assunto. O senhor não está em dia com os milagres da tecnologia moderna? Nós desenvolvemos um sistema de indução cerebral de forma que para aquela pessoa é como se passasse mesmo um ano. Entendeu? Mas isso não é tudo. Temos outras formas alternativas como colocar o homem lendo o dia inteiro, por vários dias, alguns livros do José Sarney, como “Marimbondos de Fogo”, “Saudades Mortas”, “O Dono do Mar”, ou “Fé racional” e “Nada a perder” do falso bispo Edir Macedo, além de outros. As reações a esse tipo de castigo são simplesmente horríveis. Tem gente que se ajoelha e implora para ficar cego para não ter de ler mais aquilo.

- E para aqueles que enfrentaram esta situação em toda a sua vida terrena, como é que vocês fazem?

- Mestre; nós não somos assim tão cruéis quanto todos pensam, de forma que é nosso entendimento que essas pessoas não mereciam ir para o inferno e sim para o céu. O Senhor não acha que viver nessa situação aqui na terra, a vida inteira, já não é sofrimento bastante? Muitas vezes as pessoas roubam somente para comer, outras, mais fracas e totalmente desiludidas apelam para a bebida, para os tóxicos e para a prostituição. Acaso Madalena não era uma prostituta até Lhe conhecer? Por que ela foi perdoada e as outras não? O motivo que as levou a isso é sempre o mesmo, meu Mestre. Portanto, lhe peço: Tende compaixão dessas pobres coitadas que são levadas a pecar por necessidade. Dai a elas uma nova oportunidade.

- É, devo reconhecer que você tem toda razão. Aliás, tenho recebido algumas queixas da nossa recepção sobre algumas devoluções que vocês têm feito e somente agora estou vendo o porquê de vocês assim procederem. Tão logo regresse vou mandar orientarem ao Papa aqui na terra determinando uma revisão em alguns conceitos de pecado, de faltas e, paralelamente, determinarei ao pessoal da recepção lá em cima que refaça suas concepções sobre os mesmos assuntos assim como aos transportadores.

- Mais uma vez vê-se o Seu senso de justiça. Para mim essa Sua decisão não foi nada de extraordinário. Do Mestre eu somente esperava justiça.

- Acabou o concerto e acho que não vou renovar que é para o pessoal ir embora, sem, entretanto se esquecer dessas músicas maravilhosas que acabaram de escutar. Está bom assim?

- Acho que graças ao Mestre as lojas de disco amanhã estarão cheias de pessoas comprando discos de música clássica. Já estou até vendo.

- Ainda bem. É uma maneira desse povo aprender a apreciar o que é bonito e bom, não é mesmo?

- É verdade Mestre. O Senhor se ofenderia se eu pedisse mais um chopp para mim?

- Não, de jeito algum e aproveite peça outra garrafinha daquela deliciosa água para mim.

Olhando meio de lado, Deus verificou que Lúcifer havia tirado algo do bolso da calça e olhava para a mão escondida com ar preocupado.

- Não se preocupe Lú. É tudo por minha conta. Mas não vá exagerar no álcool.

- Não, Mestre, jamais faria uma coisa dessas na sua presença. Mas, me diga agora se for possível, qual o motivo da sua presença aqui neste planeta?

- Sem dúvida, sem dúvida. Nada a esconder. Ao contrário de você, vim até aqui pessoalmente, preocupado com a acentuada queda que vem se verificando, mais ou menos neste mesmo período de tempo que você falou, de seres deste planeta que passam pela recepção da minha casa. E mais; constatamos que esta queda se verifica, principalmente, entre as pessoas mais jovens. Não tenho comigo um percentual que possa ser comparado com o seu, mas a queda é muitíssimo acentuada.

- Explicando-se desta forma, o aumento brutal que tivemos na nossa casa.

- Nestes poucos dias que aqui estive, percorri todos os continentes, todas as partes da terra onde o homem já colocou seus pés. Não ficou nem um metro onde eu não tenha ido e o que vi me deixou muito triste e desanimado, afinal, não criei o homem para ser isto que aí está. A vida do homem é cheia de paradoxos. Eles fizeram muito progresso na medicina, no entanto nem por isso vivem melhor, pois o mais interessado na morte do homem é o próprio homem que cria a doença que irá lhe matar e lhe nega o remédio que poderá lhe curar; o homem gosta muito de ler e discutir o que leu, mas é incapaz de orar ou ler uma oração para seu Deus e discuti-la com alguém; o homem tenta conquistar o espaço sideral quando ainda nem conquistou o seu espaço interior, enfim, o homem tem pressa, mas infelizmente, não sabe esperar.

Deus calou-se repentinamente, ficou pensativo com os olhos fixos num horizonte muito além onde a vista de qualquer ser humano possa jamais alcançar.

- Sim e uma coisa tem nos chamado a atenção. A desobediência do homem. Eles estão cada dia mais desobedientes e pretensiosos. Ora, os homens querem chegar até Mim! Eles podem chegar próximo a Mim, mas nunca até Mim. Da mesma maneira mais de 1000 anos terrenos haverão de se passar e eles jamais chegarão a qualquer outro planeta idêntico à terra. Tudo não passa de uma quimera, uma utopia. Somente Eu posso fazê-los chegar a qualquer outro planeta igual a este e no momento que eu quiser e você sabe muito bem disso.

- Mas Mestre, eles sabem que a terra tem um tempo de vida marcado para acabar. Estão apenas tentando encontrar uma salvação.

- Disse uma vez e repito “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim. Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá.” Então por que o homem não acredita nas palavras quando eu aqui estive e entreguei-lhes o meu corpo para salvá-los? Não. A terra nunca se acabará. O poder de recuperação que Eu dei à natureza supera em muito o poder de destruição dos homens. Aquilo que Deus faz o homem não desfaz.

- Mas Mestre, segundo dizem, isso é fato cientificamente provado.

- Mas Eu posso mais do que a ciência e posso muito mais do que o homem.

- Quer dizer então...

- Sim. Quer dizer exatamente isso que você está pensando. A vida da terra é infinita como infinita é a vida dos homens de bem. Quantos planetas iguais ao planeta terra existem no infinito? Tantos quantos eu quiser que tenha. Em que fase da vida estão? Alguns começando, outros iguais a este e outros superiores, muitos anos adiante. Cada um terá o seu novo mundo, uma nova vida ou então igual, mediante o seu merecimento no mundo anterior.

- Isso me deixa completamente desconcertado Mestre!

- Por mais que o homem o tente, ele jamais conseguirá acabar com a terra.

- Mas, e os que estão comigo? Permanecerão?

- A ida desses homens para você é apenas temporária. É uma provação, ao mesmo tempo em que é uma purificação para sua vida posterior. Assim é e assim será por toda a eternidade.

Depois dessas palavras de Deus, houve silêncio. Era como se a vida houvesse parado. As pessoas que passavam pararam instantaneamente e não falavam; os ônibus e automóveis pararam imediatamente, o metrô parou e paradas ficaram as pessoas dentro dele, o mesmo acontecendo com os elevadores e as pessoas nos escritórios. E assim foi em todos os continentes, nos mais recônditos e longínquos recantos da terra.

- Mestre a terra parou de girar, disse entre surpreso e amedrontado, Lucífer.

- Não Lucífer, a terra nunca parará de girar. Jamais deixarei que isto aconteça, porque se ela parar as pessoas imediatamente serão devoradas por gigantescas tempestades. A velocidade do vento se tornaria tão grande que provocaria instantaneamente incêndios por todo o planeta. Toda a água do planeta, salgada e doce, se moveria em direção aos polos em ondas gigantescas, jamais vistas pelo homem. O núcleo da Terra que como todos sabem é de ferro também pararia de girar e ele parado faria com que a terra perdesse o campo magnético que a protege. A radioatividade do sol automaticamente mataria tudo o que houver sobrevivido. Qualquer criatura que ainda estiver viva de um lado do planeta, estará constantemente exposta ao sol, com temperaturas cada vez maiores, um calor insuportável, chegando a patamares onde é impossível a sobrevivência, enquanto que a parte escura da terra congelaria. Se a terra parar esses prédios imensos que você vê nas grandes cidades irão ruir e as pessoas, veículos e animais serão jogados para frente a uma velocidade de mais de quatrocentos quilômetros por hora e se despedaçarão no primeiro obstáculo que houver à sua frente. A vida na terra jamais seria capaz de se recuperar. Nunca mais. O fim será definitivo já que o planeta irá vagar pelo espaço infinito sem destino e sem fim. Isso que eu fiz foi apenas paralisar a vida. Apenas para mostrar o poder que Eu tenho. Logo tudo voltará ao normal.

Realmente, não se passaram 2 minutos e tudo voltou a funcionar, as pessoas a andar e conversar. Ninguém havia percebido nada de estranho.

- Mestre o manto da noite já cai sobre a terra escurecendo-a e dando por findo mais um dia. O Mestre não imagina a alegria e a felicidade que estou possuído por havê-lo encontrado e, se não for pedir demais, se não for blasfêmia Mestre, dai-me a sua benção e o seu perdão.

- O fato de me encontrares já é uma benção para você Lúcifer e o fato de havermos conversado por tão longo período já é um perdão, pois mal algum lhe desejo. A propósito: Você volta logo para casa ou ainda se demora neste planeta?

- Não Mestre. Esta foi a última etapa da minha viagem e dou-me por satisfeito com o que consegui apurar e muito mais ainda por ter tido este momento tão raro de vê-lo novamente e poder Consigo conversar tão agradavelmente.

Dizendo isto Lúcifer tirou um pano velho e surrado do bolso da calça e enxugou algumas lágrimas que lhe correram pelo rosto.

Em seguida, demonstrando claramente estar emocionado pelo momento que acabara de participar, escafedeu-se e caminhou em direção à calçada.

Deus permaneceu sentado na sua cadeira, puxou alguns papéis do bolso do paletó, chamou o garçom, pediu a conta e esperou e enquanto esperava pôs-se a meditar sobre tudo o acabara de ocorrer e sobre o que havia conversado com tão inusitado personagem.

Após pagar a conta levantou-se, andou em direção à calçada a tempo ainda de ver o seu interlocutor dobrar a esquina da Av. Paulista com a Rua Brigadeiro Luiz Antônio no sentido dos jardins.

Finalmente, depois de andar por quase um quilômetro, Lúcifer, viu-se, de repente sozinho num beco estreito e aproveitando-se deste momento de solidão, enrolou-se na velha capa que trazia pendurada no braço, bateu com os dedos e rapidamente desapareceu.

Deus, ao sair do barzinho, virou-se na Av. Paulista na direção contrária e caminhou ainda algum tempo. A noite já havia descido o seu manto negro sob a cidade e as luzes dos postes já estavam acesas. A temperatura era agradável, o céu estava limpo e as pessoas – agora em grande quantidade – passavam de um lado para o outro, todos sorridentes com o fim do expediente e, principalmente, da semana, pois era uma sexta-feira.

Os barzinhos e as calçadas pululavam de gente, numa agradável mistura de homens e mulheres, moços e jovens, brancos e negros e Deus ia observando essa alegria das pessoas e ficou feliz por ver aquela confraternização de raças, de sexos e credos e concluiu que fizera muito bem quando criou esta parte do planeta.

Caminhou mais um pouco, entrou por uma transversal e apesar do horário ser de grande movimento de pessoas indo e vindo, deparou-se com um portão aberto que dava num grande jardim que, àquela hora encontrava-se deserto. Parou escolheu bem um lugar e antes de dirigir-se para lá, fez o sinal da cruz e disse:

- Que todos os habitantes deste planeta sejam abençoados e perdoados de todos os seus pecados. Este é o Meu desejo.

E m seguida entrou no meio da vegetação e misturando a ela, desapareceu.

São José dos Campos/SP, 26 de outubro de 2014

S B Braga
Enviado por S B Braga em 13/11/2016
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