Caderno

Em tempos de arquivos digitais, só poetas sabem o significado de um caderno. E ainda que eu saiba da hiposuficiência das palavras para dizê-lo, não é descabido lembrar que caderno vem do latim quaternum, de quattuor, “quatro”, porque eles começaram sendo feitos com folhas dobradas em quatro e juntadas pela dobra. E nisso há que caderno tem dobras. Caderno tem junta. E caderno, até quando não tem margem, tem margem. Às margens de um caderno, a quarta, deixo essa glosa.

E não excede lembrar e exceder, aqui, não seria um excesso, que originariamente se escrevia nos cadernos à lápis. E lápis, também do latim, significa pedra. Porque a pedra, a que registrava a escrita, tão segunda ante a fala, era a pedra vermelha, a mesma que hoje se sabe jóia, hematita. E nisso há que caderno guarda vermelhos. Rios vermelhos. Sangue e olhos. O Sol ao fim das tardes sem fim. Jóias. Poemas preciosos.

E quando se chega à caneta, canna em latim, de haver aquele talo vegetal, nisso há que caderno tem açúcar e mel. E no rastro do açúcar, da doçura do açucar, caderno guarda café, abraço, abelha, pólen, chão e flor. Até o zumbido da respiração dos viventes e não viventes vai parar no caderno.

A seguir com a caneta, a escrita, tinta vem de “acqua tincta” e quase já derramo aqui, na folha de papel, essa “água tingida ou colorida”, a mesma raiz onde bebe o vinho tinto. O vinho com cor. Qual a chance de existir sem cor? A cor rubra do amor. E já no delírio da embriaguez dos poetas, que levou Rimbaud ao inferno e Barthes ao prazer, a pergunta não quer cessar: por que se teme tanto escrever sobre o amor?

Não bastasse, ainda, e de volta ao começo, às folhas que se dobram em quatro, caderno tem vida. Árvore. Folha. Papel. O mesmo dos guardanapos, que guardam o segredo de nossas bocas. As árvores que sombreiam. E as folhas. Do latim folia. Folia ao vento. Outonos e  Carnavais. Escritos sem pecado. Poemas vivos. Em tempos de arquivos digitais, um caderno é um invento.