Passado III

Já vivi de passado, já vivi no passado. Por muito tempo ele me assombrou, enxugou minhas lágrimas, acalentou minhas noites frias e vazias.

Em muitos amanheceres, ele abraçou minha saudade, alimentou a fome, saciou minha sede, aqueceu meu corpo.

Chorou comigo, quando lavou minha alma, quando a solidão não era minha, era dele. Salvou-me quando eu morria em mim.

Vivi tanto tempo com ele, e dele, que esqueci quem eu era, para ser passageira do tempo que ele me dava. Revivi cada segundo desse tempo tão passado.

Fui feliz, fui viva, fui triste, doída, porque ele estava comigo.

Acompanhou-me em todo presente complacente, paciente, com aqueles amores que ele não queria que eu abandonasse.

E, todos os dias fazia-me lembrar, punha o dedo nas feridas até que sangrassem, para eu não esquecer.

Então, uma manhã, já cansada desse passado companheiro, pedi que fosse embora, para bem longe, que me desse um pouco de tempo para esquece-lo. Que me deixasse sozinha, que me deixasse sem nomes, nem endereços.

Acho que por pena, ou tédio, ele partiu. Desde então, não sei quem ele foi, não olho mais para ele, nem para trás. Já não o conheceria se o encontrasse na rua. Prescindi dele, não peço para que volte, não me agonia mais. Deixei de querê-lo, de dar-lhe importância, sou como sou, e ele não me pede mais nada, não me apavora, somente o respeito como história de vida.

Vivo dos seus ensinamentos, não vivo mais dele, nem por ele. Vivo por mim, respiro pelo que virá. Tudo, e todos que ele deixou, são apenas "passado", que passaram como ele.

E eu, passei do passado como todos passarão.