O PUPILO SAPECA

Como já tens notícia através de outros textos publicados, o meu processo de percepção do fenômeno da criação poética, diferentemente da maioria dos irmãos-poetas, se dá desta maneira: todo e qualquer poema não é de meu inteiro domínio, quando ele aflora. Eu sou, enquanto criador literário, o portador dos desígnios do Mistério, porque este é o único que efetivamente dá curso ao enfrentamento das situações, especialmente no momento em que a inquietação pessoal traduz os confrontos entre situações ocorridas na vida real – normalmente no plano dos afetos – quando exsurge o poema lírico-amoroso. Este “estado de poesia” é indomável e incontrolável através dos mecanismos da intelecção: flui inopinadamente num arfar da inspiração instintiva, seja num guardanapo de bar ou mesmo quando levantamos a cabeça do travesseiro, abrindo os olhos com o poema na cuca. No entanto, não o podemos prever como desiderato sob algum controle. Aliás, quase todos os desejos provindos do inconsciente são de impossível previsão, segundo as abordagens do precursor Sigmund Freud, na psicanálise e os que o seguiram. O que temos – parece-me – é a voz do mistério. São os meus alter egos que o recolhem não sei de onde, como um natimorto em estado embrionário. O poeta-leitor é quem lhe dá o bafejo original e o coração começa a bater contra o peito desde a pouco inerte, num solfejo de respiro, anunciando vida. E, submetido à tensão do flagrante autoral, suspiro por ele: o pupilo sapeca, cara sujinha de sangue, deslavada, palavra saindo entrementes, língua à solta. Neste ritual, a Palavra incomum, mimosa e humilde, pede atenção aos gritos e choros de: quero viver! Antecipa-se ao enfrentamento que inevitavelmente terá ao descobrir a crueza do mundo.

– Do livro OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/17.

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