A Equilibrista de Dores

Puro resultado da arte do improviso, de migalhas de construções abastadas. Tudo o que pudesse ser aproveitado para tornar um sonho realidade. Sem plano, sem rumo, sem arquiteto. Sem cabimento, sem fundamento. Minto. Com fundamento, porém torto.

Um dia, mais uma parede equilibrista. No outro, mais um pedaço de chão de pedras batidas, preparação para o que um dia viria a ser um piso de cimento rústico. O sonho escapava pelas fendas entre os tijolos. Estes não se cheiravam. Não houve meio de uní-los com aquele cimento ralo. Cimento não, muito mais barro. Logo se previa que aquilo tudo um dia ruiria. Mas não se queria ver. Precisava-se sonhar.

Com uma força tamanha, chegou-se à cinta. Ferro velho, usado, vagabundo, torto. A criatura equilibrista desafiava as leis da física, e de pé se mantinha, e crescia.

Todas as paredes, o chão de terra batida. Agora o teto, acima, viria.

Madeira podre, roída. Mal cortada, serrada. Roubada? Não se sabia. Roubados, por certo, eram os sonhos de morar bem, pelo tanto suor que se dava no trabalho explorado, e o pouco ganho que dele se obtinha. O monstro foi crescendo. Forma: nem os olhos mais otimistas vê-la conseguiriam.

E veio o teto. Acima. Telhas baratas. Quentes no calor; nulas no inverno. Os dias de chuva de “trivoadas”, gota-a-gota bebidas pelo chão de pedras batidas. Ficava o barro molhado. A água do céu aberto misturava-se ao sereno dos olhos fechados. E tudo, junto, ia por água abaixo.

Paredes, o chão e o teto. E agora eram os olhos que não se fechavam, por falta de pálpebras e cílios. Eram também as várias bocas que lhe quedavam abertas, sem dentes, sem línguas. Não sorriam, gritavam. Todos podiam, de fora, ver por tais orifícios sua alma nua, em suplício.

Não bastasse a dureza da vida, a escassez de bens, havia ainda a inveja do outro sufocando a tenaz alegria. Das migalhas de outros, com tanto sacrifício conseguidas, mister seria vigiar, para que ladrões, aquele pouco, não lhes viessem tirar.

Paredes de areia, chão de barro, teto esburacado. Agora tinha também bocas e olhos, vendados. Mas não tinha banheiro, nem água, nem luz, nem esgoto, nem alma vestida.

Com o tempo, veio a ter muito do que lhe faltava, mas tudo torto, improvisado.

Aquela casa existia, simplesmente, para expressar de seus donos, frustrações, dores e danos. Era uma casa sem alma sorridente. Era sombria, triste. Não abria suas bocas, por vergonha de mostrar a falta dos dentes.

Porém, seus habitantes, se hoje ainda vivem, isso a ela devem, a essa morada de dores, que por anos, calada, tudo de ruim, só para si, deles absorveu, engoliu, guardou.

E ela, essa equilibrista de dores, inda hoje está lá, de pé, desafiando as leis da vida.

***

Para Suca, com amor.

"Tanta briga, tanta luta, tanta dor por causa dessa casa e olha só o que restou..."

Das dores dessa casa, Suca, brotou muita vida.