POEMA SIMPLES
Ontem à noite,
ela se vestiu lindamente,
maquiou-se como há muito não fazia
e veio, toda feliz e sorridente,
convidando-me para sairmos sozinhos
– sem nossos filhos –,
o que, de tão raro, deixou-me deveras
com a pulga atrás da orelha.
Depois de uns goles vinho
e de algumas lembranças quase perdidas,
que ela invocara propositadamente,
chamou-me para dançar
quando tocava “The power of love”,
com Céline Dion;
e sussurrou-me ao ouvido
se eu sabia que dia era aquele:
forcei a memória fragmentada, estiquei-me todo
para lembrar algo, e só então percebi
que fazia exatamente vinte anos
de nosso casamento.
Percebendo que eu não conseguia
me dissimular na inesperada situação,
em vez de ficar chateada com minha displicência insípida
– o que lhe era de pleno direito –,
ela deu-me um abraço e um beijo demorados,
afagou-me os cabelos pardos
e disse que sempre houvera me amado;
e eu ali perante a mulher
que, em toda sua vida, foi tocada só por mim,
e a única a quem, em toda minha vida,
sincera e verdadeiramente amei;
a me perguntar,
diante daquele clarão de realidade,
como – mesmo assim – fui capaz de me voar,
canina e escondidamente,
por céus tantos terreiros encharcados
e por tantos céus contaminados.