Índio em pó
ela começou me explicando que
aquele rapé era uma antiga receita tribal
algumas raízes, ervas, raspas de madeira
e uma pequena porcentagem
de cinzas humanas, resultado de cremação
era uma forma nobre de transmitir a sabedoria
dos velhos xamãs tribais que já deixaram esta vida
tinha um brilho nos olhos enquanto explicava
pediu pra que eu fechasse os olhos e respirasse fundo
parecia interessante, mas sou alérgico a pó
senti que minha fisiologia sabotaria impiedosamente
a sabedoria dos antigos xamãs tribais
ela separou um pouco do rapé na mão direita
e foi colocando em um pequeno canudo
os europeus cheiravam o rapé
da mesma forma como se cheira cocaína
mas aquele não, uma vez dentro do canudo
o rapé deveria ser assoprado pra dentro da narina
ela assoprou a primeira leva daquele pó
e aquilo me fez lembrar uma nasofibroscopia
minha narina queimava, como ela disse que seria
talvez os antigos xamãs estivessem rindo
quando ela aplicou em mim o segundo jato de pó
dessa vez do lado direito, queimava em dobro
eu imaginava um lindo totem, um gigantesco urso marrom
e um pajé ancião fumando um longo cachimbo ao lado
usando um belo cocar, feito com as penas de uma arara
tenho certeza de que meu nariz pensou que aquilo fosse suicídio
minha fisiologia já dava sinais de sabotagem, como previsto
ela apenas me olhava e ria enquanto eu retorcia o nariz
a beleza do conhecimento tribal
lutando contra minha alergia ao pó
e naquele dia os anciãos, infelizmente, foram derrotados
espirrei uma, duas, três, quatro vezes e assim por diante
não me pareceu ser um fim muito digno
meus espirros simplesmente mandaram pelos ares
os restos mortais daquele antigo mestre indígena
ela apenas ria e me abraçava apertado...
acho que o índio em pó decidiu ser gentil comigo.