Chilrear

Sentir no ar,

Aquela doce miscelânea,

Eterna permanente fragrância,

Da canhota na lareira,

Com o odor do gado,

Cabritos saltitantes,

O cacarejar do velho rude galo,

E o miar do melro.

Calçada antiga portuguesa,

Como a escrita dos dedos de deus,

Que em nada tinha de burguesia,

Caminho de ricos e menos ricos,

Caminho de todas as gentes.

Toquei a erva ainda orvalhada,

Na colina solarenga,

Primaveril e húmida,

Quanto baste dúbia,

Se seria dia quente,

Se seria dia ameno,

Como num toque de seda espinhosa,

Agreste e manhosa.

Nada resta fazer,

Apenas correr,

Correr, correr, correr,

Em toque de marcha,

Porque o melro me enganou,

Quando o ouvi a ladrar.

Corro até à vila,

Corro até à ribeira,

Corro por entre rochas e rochedos,

Alguns em forma de cabeças penedos,

Que esqueci,

Que ficaram para trás,

Que guardo na memória dos dedos das mãos,

Da sola dos pés,

Das borboletas me fizeram sorrir,

A cada assobio do amigo pardal.

A brisa tarda tardia,

No fim do dia,

A cada dia,

Breve e selvagem,

Meu querido pagem,

Que me acalma o fervor,

Seca-me o suor,

E acalma a alma,

Daquele eterno calor,

Da voz poética,

Em cada conto contado pelo melro.

As pernas vão mais cansadas,

Mas devo alcançar o topo,

Por maior que seja o goto,

Já dormente virilha,

Mais um passo rumo à colina,

Onde o melro rugiu.

A casa era velha,

Na colina ancestral,

Sem luxos ou limusinas,

Sem Édens ou piscinas.

A porta estava trancada,

Apenas com uma chave,

Pelas mãos do sábio "padre",

Que pernoitou no engate,

De vinhos e verdades,

De magias e ambiguidades,

Na certeza de que o céu,

Não é o limite da eternidade,

Das estrelas ou do melro cantante,

Que uiva solitário,

Num palco sem plateia,

E as flores batem palmas,

Com o maior sorriso do sol,

Que me saiu da poética veia.

O melro precisa entender,

Que ainda me está a dever,

Um recital coloridamente gótico,

No caminho de volta à cidade.

O mundo precisa entender,

Que da vida vai sempre depender,

Do suave sopro de morte,

Do pio infantil do melro,

No dia da eterna partida,

Para poder sobreviver,

Até que me esvaia em palermices;

Mais à tardinha irei beber.

O alcatrão reluz estranhamente,

Talvez feliz,

Talvez contente,

De casuais alegrias,

Fundido na nova velha calçada,

Da histórica cidade,

Que já viu muita atrocidade,

Pernas abertas de felicidade,

Gritos intensos de vitória,

Sorrisos de esgar felicidade,

Brados dum melro louco,

A louvar a nacional glória,

De um reino perdido na boémia,

Ou nas palavras ambíguas,

De um eterno romance,

Ou de um simples poema,

Que dá vida à vida,

Que conta histórias e estórias,

Até que o melro perca a voz,

No seu eterno chilrear,

Numa lenda milenar,

Que é a minha essência,

Mera e casual existência.

O melro olhou para mim,

E voltei a chilrear...

(Ferreira Carlos)

Ferreira Carlos
Enviado por Ferreira Carlos em 28/06/2017
Código do texto: T6039708
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