Vida: irônica forma de castigo.

É madrugada.

Cigarro aceso, eu interpreto as manchas

que o tempo tatuou nas paredes da sala

tão plena do seu silêncio.

Coloco um velho disco para tocar.

Com a volúpia de uma dor induzida,

Ouço a voz antiga da cantora francesa

que faz recordar discussões acaloradas

que mantínhamos antes do amor inevitável

regado a vinho e dependência.

Os móveis sacralizaram seu cheiro.

Ouço seus passos descalços atravessando

a soleira da porta, cigarrilha na mão,

Anunciando que todas as certezas eram vãs

e que somente os vícios santificavam

após Genet.

Emoldurei seu bilhete com a chaga mais profunda.

Ao reler, suicida, eu pude sentir a morte em cada

oração e perceber como os verbos tem o

mérito das despedidas.

O mundo se reinventa diariamente lá fora.

Aqui dentro, no entanto, vou rasgando cada

fragmento de vida que você deixou

como uma permanente humilhação.

Os anos teimam em cravar seus dentes.

No espelho, o meu olhar já não reconhece

o rosto caiado por essa tristeza pálida.

Como última manifestação de coragem de um homem,

eu tranco a porta da velha sala e, aos berros, anuncio que

a vida pulsa como uma irônica forma de castigo.

Roniel Oliveira
Enviado por Roniel Oliveira em 26/06/2017
Código do texto: T6037621
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