Vida: irônica forma de castigo.
É madrugada.
Cigarro aceso, eu interpreto as manchas
que o tempo tatuou nas paredes da sala
tão plena do seu silêncio.
Coloco um velho disco para tocar.
Com a volúpia de uma dor induzida,
Ouço a voz antiga da cantora francesa
que faz recordar discussões acaloradas
que mantínhamos antes do amor inevitável
regado a vinho e dependência.
Os móveis sacralizaram seu cheiro.
Ouço seus passos descalços atravessando
a soleira da porta, cigarrilha na mão,
Anunciando que todas as certezas eram vãs
e que somente os vícios santificavam
após Genet.
Emoldurei seu bilhete com a chaga mais profunda.
Ao reler, suicida, eu pude sentir a morte em cada
oração e perceber como os verbos tem o
mérito das despedidas.
O mundo se reinventa diariamente lá fora.
Aqui dentro, no entanto, vou rasgando cada
fragmento de vida que você deixou
como uma permanente humilhação.
Os anos teimam em cravar seus dentes.
No espelho, o meu olhar já não reconhece
o rosto caiado por essa tristeza pálida.
Como última manifestação de coragem de um homem,
eu tranco a porta da velha sala e, aos berros, anuncio que
a vida pulsa como uma irônica forma de castigo.