Felicidade-Tristeza

Eu descreveria com gosto um diálogo entre a Tristeza e a Felicidade, mas não posso: as duas são surdas-mudas, não ouvem e nem falam. Quer dizer, falam, falam muito, inclusive com uma grande capacidade de articulação, mas suas palavras são vazias, não representam nada além da auto-promoção.

Mais atrofiada ainda é a sua capacidade de ouvir. Pra quê, ouvir o outro, se seus destinos são tão certos quanto a morte - a Tristeza deve ser triste, a Felicidade, feliz. Não podem se deixar influenciar a ponto de ser outra coisa a não ser o que são. Estão condenadas a viver o que pregam, e a nunca mudar. Seus silêncios, enquanto um outro fala, são só momentos de concentração para confeccionar outros discursos - formas mais sofisticadas de promover seu discurso previsível.

Não foram sempre antagônicas, certas de seu destino, assim: Tristeza já fora feliz, um dia. Talvez tenha se tornado Tristeza justamente por isso: sua felicidade secou permanentemente. Talvez seja triste justamente pela nostalgia dessa felicidade, que nunca mais vai voltar.

Declara que toda sua infelicidade é responsabilidade do Tempo; estava sempre ele à espreita, esperando o momento certo para demolir castelos de areia que Tristeza adorava construir na praia. Quando não o Tempo, o Mar, o Vento - acho que a função do castelo de areia é ser destruído, para ser reconstruído e desconstruído novamente. Voltar eternamente a ser algo sem forma, sem nome nem crachá.

''O Tempo é sempre um estraga-prazeres'', ela pensa. Depois das várias construções demolidas por ele e sua personalidade destrutiva, repetitiva e insistente, está de mal com ele, traumatizada, sempre achando que ele virá destruir tudo: envelhecer seus pais, seus filhos, amarelar seus papéis, caducar seu corpo e sua fala, esconder suas memórias debaixo dos armários, enrugar seu rosto, matar seus cães, suas plantas, rachar muros, minguar seus amores. O tempo é , realmente, um apaixonado pelas ruínas.

Por isso, não constrói mais nada. Colocou relógios de parede em todos os cômodos de sua casa, para lembrar que ele está sempre passando, passando, passando, levando suas coisas embora, inclusive seus anos de vida. É seu principal vilão.

Não adianta fazer muita coisa: ele sempre trará o vazio. Tristeza ignora a fome, o sono, a vontade de sexo. ''Não adianta comer'' , diz ela, ''é perda de tempo. Vou saciar agora, daqui a pouco estarei com mais fome novamente. Acho que nunca estive satisfeita - é possível alguém estar satisfeito com qualquer coisa? Talvez a fome me sustente melhor e por mais tempo do que o alimento.'' Tristeza não faz nada: deixa tudo vazio, como deve ser. Deixa a areia ser simplesmente areia. Assim, nenhum castelo será destruído. ''A falta é a coisa mais confortável que existe'', diz ela, como se tivesse descoberto o segredo da vida, ''não há nada a perder.''

A Felicidade já pensa diferente: está sempre construindo coisas, sem parar, mas tudo acaba ficando incompleto, já que está sempre se distraindo com algo novo, com uma ideia que parece melhor. É muito distraída; já que é completamente viciada na felicidade, em tentar fazer do mundo um lugar feliz, em melhorar tudo. ''Tudo pode ser melhor'', diz ela, '' e confesso que isso me deixa meio louca''.

É dependente da serotonina. Sempre está arranjando alguma forma de estampar um sorriso no rosto, nem que essa forma não a faça tão bem: drogas, bebida, sexo; são suas ferramentas para manter a felicidade por perto. Tem orgulho do que faz, mesmo que tudo esteja inacabado - com todos os seus trabalhos pela metade, acho que no fundo eles são peças se completam.

A Felicidade não faz bons poemas. Está distraída com a música alta, as pessoas girando em ciranda, o céu azul livre de nuvens. Normalmente, não se senta por um momento pensando no passado, analisando a condição limitadíssima de seus homens. Está sempre pulando na beira da mesa, gulosa, pedindo, por mais felicidade - alimenta-se grosseiramente a fim de engordar; quando estufada, quase explodindo, escreve algumas odes à aquilo que a alimenta e à aquilo que a faz ser o que é.

A Tristeza, por sua vez, não poderia ser mais poética do que já é. Está criando poemas sem parar, como quem embala o dia assobiando sua própria trilha sonora. Distrai-se, também, com a Culpa e trocentas outras criaturas que ficam girando em torno de sua cabeça. Barulho incessante: seu monólogo interno, às vezes invadido pela voz de outros, do passado, ainda não perdoados, vociferações, ataques de si mesma para si, fantasiada pela voz alheia.

Por mais que a Felicidade esteja sempre em busca de si mesma, inclusive tentando se refletir nos outros, esforçando-se laboriosamente para fazer do mundo um lugar melhor, porque acredita que ele pode e deve sempre ser aperfeiçoado, a Tristeza acaba sem querer sendo mais útil para este fim. É uma anti-referência, muito forte, e quando passa pelas pessoas, carrega uma angústia que as move para longe daquilo, em busca da felicidade. Ela deixa nos outros uma vontade de calma, de serenidade...

No fim, as duas são apenas parasitas nos em nossos corpos, esses frágeis corpos humanos, que carregam luz e sombra, bom e mal, preto e branco, e tudo o que permeia essas coisas. São elas que provocam a Falta; que nos deixam fracos, pálidos, viciados em consumir, apegados.

O jeito é achar o caminho do meio, e intoxicar-se a fim de matar as duas.