Passagens

Andei visitando lugares que se chamam passes, que pelo que entendi, é nome dado a um caminho estreito e alto, dando passagem de um lugar a outro; muito comum em regiões montanhosas -- penso eu. Pensando nesses caminhos, nas passagens em vários sentidos, fiquei me perguntando como e quando estamos de fato preparados para a morte, seja a própria ou a de pessoas que amamos.

Por mais de dois anos vi minha mãe ‘adotiva’ ir definhando devagar, até chegar a um ponto em que seu corpo não pôde mais suportar. Do universo dos que conhecem meu passado, de alguns bem poderia ouvir: “Mas ela não era tua mãe”. E a esses eu respondo: Sim! Biologicamente, de fato, não era... Mas o sentimento que existia entre nós duas, pelo menos o meu por ela, esse não há criatura nesta vida que eu permita duvidar de tal ligação. Para mim, ela é sim minha mãe, e ponto final!

Ao ver nela a vida se esvaindo, ao mesmo tempo em que eu não queria que ela sofresse, também não queria separar-me dela. A passagem, a cada dia, ficava cada vez mais evidente. Creio que por isso, pela dor da separação, não quis vê-la por muito tempo num caixão, sendo velada em meio à sala da casa em que morávamos.

Não, a imagem que queria guardar dela era a de outros tempos, por exemplo: a de quando eu chegava da escola, e a primeira coisa que fazia, ao entrar em casa, era correr para a poltrona na sala, ao lado da janela -- onde ela costumava sentar-se para fazer o seu crochê --, então beijá-la e abraçá-la muito, e dizer: “Mãe, eu te amo muito, muito, muito, muitão! “ Isto era pra nós duas um ritual.

Escrevo isto e lágrimas escorrem dos meus olhos, ao recordar. “Mãe, eu te amo, sinto tua falta, Deus te conserve em bom lugar”. Quando ela morreu, escrevi num diário: “Qualquer dia, mãezinha, eu volto a te encontrar.”

Tenho esta certeza. De onde vem? Não importa. Houve vezes em que sonhei com a possibilidade dela não ter, de fato, passado, de ter apenas adormecido, e nós por engano a termos enterrado. Este pensamento macabro me acompanhou por muito tempo, tempo que eu precisei para aceitar sua ausência.

Era um sentimento muito ruim, desesperador, como nesses filmes de terror, de cemitério, onde os mortos queridos voltam, como se de fato não tivessem morrido. Porém, fica a eterna dúvida: se quem voltou foi mesmo aquela pessoa amada, ou uma outra coisa, um zumbi, algo que não é natural, algo mau.

Tive muito medo de ter enterrado minha mãezinha viva, embora tudo provasse que tal idéia fosse um absurdo, impossível de ter se passado de verdade. A mente humana engendra muitos caminhos para fugir, por vezes, da realidade. Acho que foi isso o que aconteceu comigo.

Agora vejo algo semelhante estar para acontecer com um grande amigo, uma alma irmã, alguém que eu amo muito, e que muito me ajudou quando minha mãezinha partiu. Assim como eu, ele se encontra na iminência da dor de deixar sua mãe partir. Sim, deixar, pois assim é a vida. Todos nascemos e um dia temos que partir, até quando Deus quiser assim.

Sim, sei que meu amigo está tentando se conformar. Deus não permite que sejamos tomados por uma dor maior do que possamos suportar. Escrevo este texto, agora, porque lembro que eu também achava estar conformada. No entanto, quando o dia chegou, o dia em que ela teve que trilhar (sozinha? Acho que quando morremos nunca estamos de fato sós...) sua passagem para fora de cena desta existência, partiu-me em mil pedaços uma imensa dor.

Quando ela se foi eu era muito, muito mais imatura do que hoje sou. No entanto, já possuía como companheira essa mesma fé que me sustenta. Fé em quê? Não me pergunte, pois é algo muito pessoal, entre mim e Deus... Essa fé que me trouxe de volta de um poço muito fundo, um misto de dor, depressão e revolta. Briguei com Deus, nessa época. Depois nos reconciliamos. Estou certa de que Ele sempre me entendeu, e tem em Suas mãos o controle de tudo.

Quando ela trilhou sua passagem, minha imaturidade na época me fez querer fechar para a vida, para as pessoas, nunca mais amar ninguém, pelo grande medo da perda, da separação. Se dependesse de mim, teria encerrado ali as minhas edições, mas o Editor-mor achou que ainda não era o tempo, e novas tiragens e edições continuam sendo lançadas.

Quando minha mãe 'adotiva' partiu, ela já estava bem idosa e cansada. Ao que tudo indica, seu tempo chegara. Vivemos várias coisas juntas, e ela muito me ensinou. Amou-me como eu a ela me apresentei, e isso foi o que me deu vida, e tornou-me o que sou.

O tempo cura tudo, todas as feridas... Eis que Deus reservara para uma criança a tarefa de me fazer voltar ao mundo, continuar amando as pessoas e descobrir de novo o prazer da vida. O que tenho aprendido até aqui? A vida continua, sempre. Nos alegramos com as chegadas e temos que aprender a aceitar as partidas, sejam elas antecipadas ou não.

Lá no alto, no passe que recentemente visitei, pus-me a pensar como seria quando chegasse a hora da minha partida. Sim, continuo tendo medo de perder quem eu amo, e para diminuir a possibilidade da dor, da separação (ainda que temporária) trato de usar todas as oportunidades que tenho para dizer a essas pessoas, em vida, o quanto as amo, o quão elas me são caras, e o quão eu peço e agradeço a Deus por elas.

Não espere até amanhã para fazer o mesmo com quem você ama. Depois da passagem, essas lembranças são parte do melhor que fica. Outro dia, passeando aqui pelo recanto, encontrei um texto (1) contando que uma criança definiu saudade como sendo “o amor que fica”. Parece que é isso mesmo... Minha mãe ‘adotiva’ partiu há 12 anos, mas o amor que tenho por ela permanece, assim como as lembranças, a saudade.

* * *

Meu amigo querido, este texto é para ti. Se bem, estou certa, que não te importas se o compartilho aqui. Assim como as alegrias, também as tristezas e, principalmente, as superações devem ser compartilhadas. Ninguém está sozinho. Recebe este texto como um beijo em tua testa, um abraço de conforto e muito, muito carinho. Deus te ilumine e te segure em Suas firmes e calorosas mãos...

Referências:

1 – Jeh Oliveira, Saudade é o amor que fica, Recanto das Letras.

http://www.recantodasletras.com.br/mensagensdesaudade/1613641

Nota aos demais leitores:

Escrevi um outro texto tratando desses momentos 'delicados' em nossas vidas. Se sentir necessidade, leia-o também. Chama-se "Viva a Travessia"

Um abraço fraterno.

Helena Frenzel
Enviado por Helena Frenzel em 19/08/2009
Reeditado em 23/08/2009
Código do texto: T1762895
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