Lições Caninas - Cena III - A Cachorrinha Preta

Assumindo que, de fato tenha ocorrido, em uma realidade distante, em uma localidade qualquer, perguntaram, certa vez, a uma criança por que os cachorros vivem tão pouco. A criança respondeu, quem sabe perscrutando os mais insondáveis desígnios da vida, que os cachorros têm uma vida breve porque já nascem puros e sábios. Deixemo-la com a palavra:

”A gente vêm ao mundo para aprender a viver uma boa

vida, como amar aos outros o tempo todo e ser boa pessoa,

né?Bem..como os cães já nascem sabendo como fazer tudo

isso, eles não precisam ficar por tanto tempo como nós.”

Mais uma variante da resposta acima: “Cachorros nascem sabendo amar de uma forma que levaríamos uma vida inteira para aprender”. Dificilmente, Sidarta Gautama, Jesus Cristo ou Chico Xavier teriam fornecido uma resposta tão profunda e singela.

Na curva de uma rua qualquer, em meio a uma cidade como tantas outras, havia uma casa. Todavia, ao contrário das demais residências adjacentes, a casa encontrava-se em torno de um metro acima do limite da rua. Ao contrário de muros austeros e ostensivos, a casa possuía grades pálidas e medrosas. Este detalhe revelava a maior riqueza da casa: a cachorrinha preta que ficava à beira do muro e próxima à grade. Há anos ela estava ali. Neste ponto, ela podia observar o trânsito, as pessoas e tudo o mais. O fato de que a casa fora generosamente construída acima do limite da rua agraciava a cachorrinha preta.

Dessa maneira, dia após dia, ela podia ser vista ali, à beira do muro e próxima à grade, observando trânsito, as pessoas e tudo o mais. Engana-se, contudo, aquele que imaginar que a pequena cachorrinha preta observava o trânsito, as pessoas e tudo o mais, o tempo inteiro ou em qualquer horário do dia. Não, jamais, longe disso! Naturalmente, ela tinha outros afazeres durante o dia. Pelas manhãs, por exemplo, ela apreciava muito deitar-se próximo à estante da televisão e escutar as conversas dos moradores humanos da casa. Acordar bem, bem cedinho para sentir o delicioso cheiro do café que eles faziam e farejar o frescor da manhã que se esvazia era algo que a aprazia de forma inexplicável. Durante a tarde, sonecas embaixo das camas da casa ou embaixo da mesa da cozinha eram passatempos que a fascinavam. Naquela cidade de temperaturas inclementes, ela também adorava deitar-se com as pernas bem abertas e com a barriga toda no chão da cozinha. Era uma boa forma de se refrescar minimamente. Nos raros dias e noites chuvosas daquela cidade pouco pluvial, a cachorrinha preta ficava horas e horas contemplando a água que caía do céu e escorria, apressada, pelos vidros da janela.

No entanto, de todos esses afazeres, havia um que a cachorrinha preta gostava de modo especial: ficar à beira da grade e observar o trânsito, as pessoas e tudo o mais. Entretanto, devido a seus outros afazeres e também ao sol que atingia aquele ponto durante as tardes, ela ficava ali apenas quando o dia estava no fim. Por conseguinte, dia após dia, era possível vê-la naquele ponto após a 16:30 ou 17:00. Ela não tinha relógios, nunca os teve. Tampouco, pedia que alguém a chamasse naquele horário, mas sempre estava ali entre as 16:30 e 17:30 Não era preciso ter um relógio, só era preciso sentir quando o calor naquela área estava suportável. Logo, a cachorrinha preta ia para perto da grade e do muro observar o trânsito, as pessoas e tudo o mais.

Desde que ela chegara, ainda tão filhote, à doce casa em que residia, ela gostava de ficar à beira da grade e observar o trânsito, as pessoas e tudo o mais. Nada disso era por acaso. Desde que chegara a casa, a cachorrinha preta se deu conta de que os demais habitantes daquele recinto eram idosos. Talvez nada a fascinasse mais neste plano do que ser adulada pelas mãos flácidas e compreensivas daqueles outros habitantes. A lentidão com que aquelas mãos acariciavam seu pelo era algo sublime, algo que talvez nenhum outro cachorro tivesse experimentado.

Contudo, ela sempre soube das limitações inerentes àqueles mãos. Ela soube, ainda quando era uma filhotinha que não havia aberto os olhos, que os outros habitantes da casa não poderiam passear com ela pelas ruas. Soube que, durante a sua vida inteira, ela jamais poderia brincar com os demais cachorros, jamais poderia rolar na lama, jamais poderia abrir sacolas de lixo e rolar sobre o seu conteúdo, jamais poderia perseguir os pombos cretinos, jamais poderia perseguir os cachorros e motociclistas, jamais poderia se dedicar integralmente às atividades de cachorro.

Prescindir destas atividades não era a vida que a pequena cachorrinha preta desejava. Não era uma vida em que ela corria através das vastas planícies no encalço dos rebanhos selvagens. Não era uma vida em que ela se divertia junto aos demais cachorros vadios daquela cidade qualquer. Não era uma vida em que ela morava no campus da universidade e dormia junto a seus amigos na porta da reitoria. Não era a vida em que ela, no alto de penhascos ameaçadores, uivava para a lua após uma caçada exitosa. Não era uma vida em que ela tinha uma dona que a enfeitava com lacinhos e roupinhas fofas e lhe dava sorvete nos dias quentes. Não era uma vida em que ela vagava livremente pelas cidades, corria atrás dos carros e comia restos deliciosos de sanduíches. Não, infelizmente a vida que ela tinha não era a melhor vida que um cachorro poderia desejar.

Contudo, nada disso a angustiava, nada disso a tornava dependente de remédios “tarja preta”, nada disso a fazia postar indiretas em suas redes sociais contra os outros habitantes da casa. Nem por um instante ela cogitava esta hipótese. Aliás, nem mesmo um filhote de cachorro seria infantil o suficiente para postar em suas redes sociais indiretas contra seus desafetos. Talvez imbuída de um conhecimento extraterreno, de uma experiência milenar, de uma sabedoria oriunda de outros planos, a cachorrinha se resignava e mantinha-se feliz. A vida que ela tinha, era a vida que ela tinha. Fazer conjecturas, perder-se em situações hipotéticas, imaginar-se em outros caminhos, em outras direções era algo inútil. Tanto era que a pequena cachorrinha preta jamais perdeu seu tempo com isso. A vida que ela tinha era excelente. As mãos idosas, flácidas e macias dos outros habitantes da casa a cortejavam, a disputavam o tempo constantemente.

A pequena cachorrinha preta ficava ali, à beira da grade, observando o trânsito, as pessoas e tudo o mais, porque os outros habitantes da casa jamais passeariam com ela. Entretanto, imbuída de uma sabedoria invejável, ela não se cortava, não começava a escutar rock e a vestir roupas pretas, ela não entrava para a criminalidade. Não, a cachorrinha preta ficava ali, à beira do muro e próxima à grade. Ela era feliz assim.

Guilherme c
Enviado por Guilherme c em 22/04/2017
Reeditado em 30/09/2017
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