II - Aquarius

{Esse texto faz parte de uma novela, com essa sendo a segunda parte.}

Primeira Parte: http://www.recantodasletras.com.br/novelas/6123544

Sexta-feira, 21 de julho

Deixei-vos tão abruptamente da última vez, senhores, queiram me desculpar. Estou mesmo me desculpando a um papel, sim, estou! Encontro-me eu nesse ponto da vida. Mas não dá, se não o fizer, sentir-me-ei um mal-educado. Agora vem o motivo do meu sumiço tão repentino e, adivinhem, foi o portão. Teve lá seu barulho, levantei-me e daquela vez era a Dona. Apressei-me para fazer as suas vontades e, quando retornei a esse canto da casa, não vi motivo para voltar a escrever. O caderninho já estava tão quietinho, fechado, descansando na mesa, parecia até dormir. Não quis perturba-lo ou fazer do seu sono um mero cochilo. Preferi apagar meu charuto e ir dormi no meu cantinho aqui no divã do escritório...

Eu digo que não vou voltar ao passado, mas simplesmente não há como! O presente está tão interligado com o que já aconteceu, meu Deus, meu Deus. Só o futuro não existe! Mentira de quem fala que o passado é somente isso, passado. Usam dessa fala com tanto desprezo pelo que é antigo, como se nada tivesse dele! Hipocrisia, meus caros. Há esse presente, e ele está repleto de passado. Lotadíssimo, há passado escapando pelas brechas das venezianas e pelas frestas das portas, está transbordando.

E foi nesse passado, há um bom tempo, que decidi que dormiria boa parte dos meus dias em qualquer lugar, qual fosse, desde que não na cama compartilhada com Teresa. Não, não entendam isso como uma repulsa máxima, não o é. É só algo que não sei dar nome, nem sei explicar em muitas linhas. Só é algo. E esse algo age assim, faz-me dizer à Teresa, bem umas três vezes por semana, logo quando amanhece, que poxa! Acabei adormecendo no divã! Noutros três dias, durmo no casarão da fazenda e, bem, tem um diazinho, aquele mesmo que resta para fechar a conta dos sete dias que a semana tem... bem, nesse eu alterno meu canto de dormida. Há as vezes que o uso de desencargo de consciência e vou dormir com a minha mulher e há as vezes, a maior parte delas, confesso, que o utilizo para satisfazer meus prazeres carnais, aqueles que qualquer homem tem aos montes. Mas sou um homem inteligente. Não faço esse tipo de coisa aqui pela cidade. Aqui é pequeno e com excesso de gente faladeira, vou eu para as cidades vizinhas nesse diazinho da semana, e lá procuro as companhias caladas. Isso começou lá no passado, como já lhes disse, mas perdura até o presente dia. Claro que, com a idade avançando, as costas ficam mandando eu ficar quieto, sentado em algum lugar, e não atravessando as pistas em busca de sei lá o que em cidade vizinha.

De toda forma, esse sistema vem funcionando há tempo. Eu e o meu divã. Eu e a cama de casal no casarão da fazenda. Uma noite em um bordel. Umas dez noites do ano dividindo a cama com a Dona. Vai indo assim. As frases como "poxa, dormi no divã!" Ou "irei no finzinho de tarde até a fazenda e talvez durma por lá mesmo" (está uso para duas situações, uma na verdade é outra na mentira, quando vou mesmo é para um bordel) servem de consolo tanto para mim quanto para Teresa. Ela recebe as falas e, mesmo sabendo que estou mentindo, nada diz, sendo um dos poucos causos (se não o único) em que ela não começa uma gritaria por coisa minha. Nunca questionou minhas dormidas, seja no divã ou na fazenda (sendo de mentirinha ou não) e raras vezes fez disso algo para jogar-me na cara. Acho que fica tão amuada que prefere simplesmente engolir e em seguida ignorar. A seu modo, permanece, em sua cabecinha, como uma mulher não traída.

Mas eu, bom homem que sou, continuo relatando para onde vou, mesmo que minta, para minha esposa. Ela faz a carinha ressentida, mas o que posso eu fazer? Ela sabe, tanto quanto eu, que um nós nunca sequer chegou a existir e, na nossa idade, eu com cinquenta e ela quarenta e oito, que chama apaixonante poderia surgir? Não é assim que chamam, chama, calor, vulcão, palpitação? Poderiam gastar umas dezenas de anos esfregando nossos corpos um no outro que fagulha alguma iria brotar. 

Estou me arrastando nessa história de contar por que dormir no divã. Mas digo-lhes o porquê; se eu simplesmente chegasse aqui como um economizador de palavras e somente falasse que dormi no divã, como bem pensei em fazer, o papel iria perguntar assim: No divã? Mas por que no divã? Por que não na cama, com a sua esposa? Eu fingiria que não ouvi o papel e passaria a escrever o que estou louco para começar a relatar, mas daria em mim uma inquietude tão enorme com as perguntas não respondidas da folha! Elas que ficariam voando, zunindo feito moscas, enquanto eu ignorava e escrevia! A frustração não demoraria a chegar e, na melhor das hipóteses, iria me contentar em escrever uma simples nota no canto da folha. Mas, por Deus, uma nota? Ai, ai. Prefiro dar-me o trabalho de explicar os pormenores.

Agora os senhores sabem que aprecio dormir no divã, ou na cama de casal do casarão, ou nos bordéis! Não é maravilhoso conhecer isso? Hein? Qualquer lugar, senhores, qualquer, como já lhes disse, menos aquele lá, com aquela mulher lá! Sem desprezo, desprezo algum! Só não há amor, nem paixão. Ah, mas se houvesse ao menos o tal desejo carnal! Este mesmo que me faz dormir nos bordéis da vida. Mas não há, não há! Não deixo de ser um homem honrado por isso. Sou em demasia. Continuo relatando para onde vou, mesmo que saibamos, eu e ela, que é mentira, eu insisto, pois sou de consolar, de explicar e de afagar os corações. Ódio me dá passar por homem desonrado! 

Mas se agora escrevo aqui não é para exaltar o divã, como podem já supor. Vim aqui para lhes contar outra coisa. Como já disse, deixei o caderninho lá descansando e fui dormir no divã (o maldito não quer sair da minha língua!). Assim deixei o caderno por seis dias. Mas hoje, meus queridos, houve um causo. Bem pequenininho, nada de grandioso. Mas não foi bem assim que devaneei a mim mesmo? Que não iria esperar por alguma causa grandiosa para retomar a escrever? Então, assim estou fazendo. Causo bem pequenininho me levou a sentar a bunda na cadeira e escrever. 

Estava eu, hoje à tarde, voltando da fazenda, única razão pelo qual ainda saio para pegar luz. Eu, todo encapuzado, de chapéu, pois, senhores, sou branco que reluz e a idade, está traiçoeira, presenteia-me com mil manchinhas na pele. Por isso só saio assim, com cada parte de mim bem protegida e livre do sol. Cito esse fato pois só com imensa e cuidadosa atenção um pedestre comum e com a pressa da rotina notaria que era eu passando pela rua, voltando para casa. Das duas umas, ou esse alguém estava a me espreitar ou por algum motivo parou ali e ficou vendo o tempo passar com muita, mas muita atenção. Só assim para prestar atenção que era eu, Gregório, bem ali, todo escondido com o capote e o chapéu. Pois assim parece que o senhor fez. Bastou eu colocar o pé na última calçada que me separava de meu destino para um dos diáconos da igreja vir me infortunar. 

— Gregório, Gregório! Quanto me custa achar o senhor! 

Custa, custa mesmo! Se não custasse, significaria que eu gostava de ser achado. Se custa, meu senhor, é porque desgosto!  

Ai, mas chega de toda essa misantropia minha.

Do homem eu só sabia seu ofício religioso, não lembrava nem do nome com clareza. Talvez o sobrenome... mas nome nunca foi comigo. No entanto, como sou muitíssimo educado, como sou! Sorri, ofereci a mão e fui de toda simpatia. 

— Estava doente, meu senhor! Mas como está a festa? Soube que esse ano há até música nova! Que maravilha. Teresa bem me disse. 

Estava eu sendo só simpático, só simpatia, meus senhores. Perguntei da festa, que para minha tristeza ainda tem umas quatro noites de resto, somente porque tinha certeza que aquele homem na minha frente era da igreja. 

— Vai exatamente como o senhor disse, uma maravilha! Mas, Gregório, doente? Como pode? De quê? É grave? 

— Só uma gripe custosa de se ir! — Mentia. Como bem sabem, fingia gripe desde domingo, com minhas tosses fingidas e meu abatimento que era fruto somente da idade. — Mas o bom Deus irá me curar para que eu possa prestigiar a festa. Resta-me ainda uns quatro dias, não é, senhor? Até lá estarei melhor. Certeza! 

— Era isso que eu queria ouvir! Vim aqui com esse único propósito. 

Logo quando eu pensava que já tinha me livrado da conversa fiada, que poderia fingir uma tosse e então me desculpar, dizendo que precisava me retirar para descanso! Eu poderia ter feito aquilo, mas o senhorzinho falou propósito com tanto esmero! Como se tivesse a palavrinha e todo o seu verdadeiro propósito bem ali na palma das mãos. 

— Mas qual propósito? — Perguntei, com verdadeira curiosidade. — Assim me deixa aflito! 

— Não há por que, não há! É coisa muito boa, meu senhor. Quero a sua presença no encerramento da festa, quero o senhor no palco! Deus sabe o quanto Estevão era cuidadoso com as festividades locais, Deus sabe o quanto esse homem era de coração bom! — Convém acrescentar aqui que esse homem, o qual o senhorzinho fala, fora meu pai. — Ano que vem, nossa tradição fará duzentos anos, meu senhor! Dois centenários inteirinhos. Nossa festa é mais velha que essa cidade ou mais que eu e o senhor juntos! Mas também, meu senhor, ano que vem fará... como bem sabe...

Empalideceu ao dizer as palavras, desviando o olhar do meu e segurando apertado o chapéu que tinha nas mãos. 

— Quinze anos da morte de minha antiga senhoria. — Lembrou. — Queremos homenagear Estevão, seu querido pai. Este que tanto fez pela tradição, pela igreja e por essa cidade! A família toda do senhor, completinha, gerações e mais gerações de gente de Deus! No dia último da festa, queremos o senhor bem no palco, para anunciarmos a colocação de um voluptuoso busto bem em frente à matriz! De pedra não, viu? Bronze! Ah, santo Deus, estou esquecendo de lhe falar de quem será o busto! Pois bem! De Estevão, seu pai! Terá o busto, o nome dele, queremos tudo em cor de dourado. Em baixo, faremos menção aos duzentos anos da festa, da contribuição da família Albuquerque para esse solo e, claro, não vamos esquecer de pôr o nome do seu falecido irmão, Deus o tenha! E claro, claro, meu senhor, vamos colocar o seu também! 

O senhorzinho diácono falou tudo com tanta empolgação que até consegui fingir uma gratidão de uma forma mais convincente que o normal. 

Como sou grato! Como o sou! Por essa bela homenagem póstuma. Claro, claro, estou muitíssimo encantado! Tudo que o meu pai e irmão falecidos precisam é terem seu busto, seus nomes, sobrenomes e tudo mais, no meio dessa cidade de nem três mil e quinhentos habitantes, no interior do interior de Minas, em Terras jamais lembradas!

Como sou grato por tudo isso. Senhor Estevão Albuquerque tem um busto lá em Vila Doracy. Sim, essa cidade mesmo. A que há quarenta anos foi elevada à categoria de cidade, porém, mesmo cidade continuou orgulhosamente com o Vila no nome! Tudo bem, essa contradição convém a essa cidade. Afinal, todo mundo aqui é tão pequeno, mas tão pequeno, que quando cresce, continua a ter orgulho de ser mínimo, e então nunca são senão o resto do pó do resquício do nada. É um belo e corretíssimo nome a esse pedaço de fim de mundo. E meu pai! Ah, a esse homem convém ainda mais ter um busto na matriz dessa cidade, Vi-la Do-ra-cy. Ele foi igualzinho ao resto da gente que aqui viveu e vive. Era um homem daqueles, dos grandes! Tinha tudo para, como é que dizem? Crescer na vida! Voar! Mas ficou bem aqui, sendo um ignorante de mente pequena. Meu irmão casula seguiu o mesmo caminho. Agora, ambos terão seus nomezinhos pela eternidade nesse lugar, desculpem-me o linguajar, de merda. Tudo isso convém a eles todos, senhores. Tudinho! 

Mas a ironia maior, queridos, não mora em nada disso que lhes contei! Habita na questão de eu, por anos, sonhei com o epitáfio, com o para lá do depois. Com as flores póstumas no caixão! Ah! Suspiros! Mas tudo isso, claro, não se passava aqui em Vila Doracy. Meu sonho tinha como cenário Belo Horizonte, o Rio! Pessoas desses cantos me venerariam. Vejam bem, hoje, ou melhor, daqui a alguns dias, a realidade há de vir a mim de novo. Eu no palco, sendo aplaudido por umas centenas de pessoas, no meio delas, os mesmos moleques que batem nos portões, o mesmo diácono empolgado! Batendo palmas para ele, filho de Estevão, grande homem igualzinho ao pai, mesmo que seja assim, tão distante de tudo! Ele, eu, sou a senhoria dessas terras, é de ter respeito. E daqui a um ano, bem no dia 16 de julho de 1951, não terei somente tranqueiras em meu aniversário! Claro que não. Ganharei meu nome lá no busto do meu pai. Bem assim, Gregório Albuquerque. Olha só! Um centenário depois, 2051, outros moleques batedores de portão, outros diáconos empolgados, outra senhoria, todos estes chegarão à conclusão que aquele busto lá na matriz é deveras sem sentido e formosura. São só pessoas do passado que todos esqueceram o que fizeram, quem foram e por que estão ali homenageadas na matriz. Os vereadores dirão, é hora de tirar! Vamos fazer novas honrarias. E a igreja diz sim, sim! Aos trezentos anos de festa. E lá se foi busto, rosto do meu pai, os nomezinhos dele e do meu irmão, o meu! Então, senhores, nem isso, meu nome ridículo estampado nessa cidade medíocre, terei eu! Talvez nem o epitáfio esteja mais legível em minha lápide abandonada. Ah, o enterro? Será no cemitério aqui perto. Lá irei de ter com meu descanso eterno. Os vermes dessa terra aqui é que vou alimentar! Essas terras tão, mas tão pequenas de si mesmas, como a própria gente que aqui brota!

[CONTINUA]