O Espírito De Prata - Capítulo I

Capítulo 1

Um Dia Estranho

Nada mais posso dizer acerca daquele dia. A não ser que foi estranho.

À tarde, por volta das 15 horas, quis a Providência que eu decidisse me sentar à beira de uma calçada qualquer e assoviar uma canção que, já há muito, me vinha assomando à mente.

Mal havia principiado a execução do assovio, quando, meus ouvidos puderam distinguir, perfeitamente, o som dos passos de um homem que, da casa da frente, desceu as escadas, abriu o portão e, após ter alcançado a rua, caminhou em minha direção.

O dono dos passos nada disse. No entanto, fitou-me com um par de olhos tão agudos e inquisitoriais que me fez perder até mesmo as notas que meus lábios emitiam.

Diante do fato, a única coisa que pude fazer foi perguntar ao sujeito:

“Incomodo, senhor?”

Permanecendo em silêncio, o homem moveu contra mim mais um de seus esterilizadores olhares e fez o caminho de volta à casa de onde havia saído.

O encontro que acabo de narrar deixou-me profundas impressões no ser. Todavia, o que mais me perturbou não foram as setas que eu sentia serem disparadas contra meu espírito cada vez que aquele homem me olhava, nem foi o modo apressado com que ele, logo ao ouvir-me assoviar, desceu as escadas, abriu o portão, atravessou a rua e dirigiu-se a mim, mas, a certeza irrefutável que o caráter misterioso das circunstâncias associadas ao seu surgimento e à sua partida fizeram nascer em meu íntimo. A nítida convicção de que a cor moreno-clara de sua pele, a mediana estatura de seu vulto, a proeminente medida de seu bigode e os traços fortes de sua face haviam, de alguma forma, pertencido ao meu passado. Um passado que, infelizmente, deixou-se sepultar sob as águas de um amargo e doloroso letes.

À visão daquela figura próxima da minha nalgum ponto pretérito de nossas existências somou-se-me a clara emanação sonora de um nome: Téo Dias.

Posto que nem mesmo me fosse possível recordar meu próprio nome de batismo, indaguei, de mim para mim:

“Quem será esse Téo Dias? Será ele, ou serei eu?”

Por não me encontrar apto a buscar uma resposta plausível para tal questão, deixei-a atirar-se à ação do esquecimento.

Mais tarde, já à noite, como sempre me fora de costume, fixei a vista no céu e me dei conta de que um temporal se armava ao longe, pronto a precipitar-se sobre a cidade e, por conseguinte, sobre mim.

Minha reação imediata à referida constatação foi procurar uma marquise que me pudesse servir de abrigo.

Por sorte, encontrei-a a poucos passos da calçada à beira da qual eu estava sentado.

Era a marquise de um prédio que abrigava uma loja de discos, cujo nome exerceu verdadeiro fascínio sobre meu pensamento. Chamava-se Companhia da Canção.

Deitado sob a marquise, distraía-me repassando pensamentos e soprando notas esparsas que, de vez em quando, vinham ter com minha memória, a fim de recompor a canção que, horas antes, eu havia perdido. Foi quando vi sair da loja um belo vulto feminino.

Temendo uma nova saraivada de setas oculares, procurei, a todo custo, fugir do local em que me encontrava. No entanto, no momento em que me preparava para pôr em prática a ação cogitada, senti ausentar-se-me o passo, como se uma força desconhecida me houvesse subtraído as faculdades vinculadas à locomoção.

No instante em que recobrei a capacidade de me deslocar, já era demasiado tarde. A moça cujo vulto eu vira sair da loja pousou suavemente suas mãos em meus ombros, submetendo meu corpo a um tipo de poder a que não pude resistir, o qual me deteve a fuga.

Segundos depois, ao observar-lhe os delgados contornos do rosto, não consegui conter a expansão súbita que me ocorreu na voz.

“Heloísa!” – gritei.

Empalidecida, após ter recuado uns bons passos, a moça estacou. Seus olhos quedaram-se ligeiramente marejados.

Embora não estivesse ao meu alcance compreender como podia a simples pronúncia de um nome provocar tamanha comoção em alguém que parecia ostentar em si um espírito de natureza tão jovial, tomei-me de sincera compaixão pela moça e, aproximando-me lentamente dela, sequei-lhe o pranto com minhas próprias mãos, à medida que lhe ia dizendo:

“Acalme-se, moça! Não foi minha intenção ofendê-la!”

“Mas, o senhor não me ofendeu!” – afirmou-me a moça entre soluços.

“Se não a ofendi, por que foi, então, que a senhorita estacou, empalideceu e chorou quando a chamei de Heloísa?” – questionei.

“Acontece, senhor, que Heloísa não é, para mim, um nome qualquer. Heloísa é o nome de minha mãe. Todas as pessoas que a conhecem ou, em algum momento da vida, a conheceram, logo que me vêem ou lhes sou apresentada, não hesitam em atestar, em alta voz, nossas semelhanças físicas e de personalidade. Ouvir o senhor chamar-me, justamente, de Heloísa fez-me supor que a conheceu na juventude e que, por não mais tê-la encontrado desde então, ao ver-me, confundiu-me com ela, fato que eu consideraria perfeitamente normal, não fosse a situação em que acabo de encontrá-lo. Entristeceu-me sobremaneira a possibilidade de saber que um amigo de juventude de minha mãe está adormecendo sob marquises. Foi por isso que estaquei, empalideci e chorei quando o senhor me chamou de Heloísa.” – eis o que me respondeu a moça, transparecendo, através de sua voz, um tom familiar e acolhedor.

As palavras proferidas pela moça deixaram-me deveras comovido, o que me obrigou a falar-lhe nos seguintes termos:

“Desculpe-me, moça! Mas, no estado em que me acho, não posso saber ao certo se conheci ou não sua mãe na juventude, uma vez que, sequer, tenho condições de me recordar do meu nome de batismo. Sou o que se pode chamar de um homem sem passado. Ninguém me reconhece ou diz conhecer-me de outros tempos. Um bloqueio mental impede que eu me lembre de minha vida anterior ao dia 18 de dezembro de 1975. Heloísa, portanto, deve ter sido apenas uma alcunha que me surgiu na alma assim que vi a senhorita.”

Assustada com o que acabava de saber sobre mim, a moça indagou-me:

“Se o senhor não se recorda do seu nome de batismo, como é que o chamam, então?”

“As raríssimas pessoas que se dão o trabalho de conversar comigo chamam-me Enzo Graziotti. Foi o nome que recebi durante o tempo em que permaneci hospedado em um albergue de Serrânia.” – respondi.

“Já, eu... Me chamo Lucila dias e estou ao seu dispor para o que for preciso.” – disse-me a moça afavelmente.

O tom com que Lucila Apresentou-se a mim encheu-me de espanto. Em muitos anos como andarilho, era a primeira vez que alguém me tratava de maneira tão respeitosa.

A amabilidade que Lucila demonstrava, ao falar-me, enchia-me de incertezas. Sentia-me qual personagem de uma situação onírica, prestes a desfazer-se com o fim do sono.

Atemorizava-me pensar na iminência de ver o agradável princípio de conversa partilhado com Lucila ser conduzido a um desfecho desagradável para mim. Afinal, não obstante o contexto em que nos havíamos sido apresentados, um tênue fio de afeto começava a atar minha essência à dela. Isto fez com que eu me visse forçado a cobrar-lhe, no curso de um ato de preocupação puramente instintiva, detalhadas explicações concernentes à inesperada cortesia que me vinha dispensando, o que resultou no diálogo que, a seguir, se lerá.

“Não entendo a senhorita.”

“O que o senhor não entende em mim, Sr. Graziotti?”

“O modo como a senhorita me trata. É incomum.”

“Mas o que há de incomum no modo como lhe trato, Sr. Graziotti?”

“É o afeto que ouço desprender-se da sua voz cada vez que a mim se dirige. É como se, para a senhorita, minha condição de simples e desconhecido andarilho não tivesse a mínima importância.”

“Neste último ponto, o senhor realmente tem razão. A mim, não interessa se o senhor é um “Simples e desconhecido andarilho”, como diz, ou “Sua Excelência, o Presidente da República”.

Independentemente da maneira como fomos apresentados, tenho, em sua figura, não mais que a pessoa de um semelhante. E costumo tratar meus semelhantes exatamente como gostaria que me tratassem.

Já, quanto ao afeto, devo dizer-lhe que não existe diferença entre o que o senhor afirma ouvir desprender-se da minha voz e o que vejo cintilar nos seus olhos quase paternos.”

“Por que é que a senhorita me fala estas coisas, se, dentro de poucos instantes, me expulsará daqui com a mesma fúria com que se espanta da sala de estar um cachorro invasor?”

“Desculpe-me, Sr. Graziotti! Mas, devo lembrá-lo de que o senhor mal me conhece. Por isso, não pode julgar-me. Nem deve prever possíveis ações minhas.

Realmente é minha intenção retirá-lo daqui. Porém, mediante expulsão, seria bastante injusto.”

“Como assim? “Injusto”? Do que é que a senhorita está falando?”

“Falo de minha consciência. Sei que ela não me absolveria, se eu me recusasse a ajudar alguém que, sem dúvida, necessita de auxílio. Ainda mais, quando estou certa de que esse alguém, em seu tempo de juventude, não só conheceu minha mãe, como nutriu, por sua pessoa, a mais sincera estima, a julgar pelo tom emocionado e efusivo com que, logo ao ver-me, pronunciou o nome dela.

Dos muitos defeitos cuja sombra paira sobre as atitudes da humanidade, a indiferença é o que mais me enerva. Permitir que o senhor passe mais uma de suas noites tendo, por abrigo, uma marquise, seria, de minha parte, um ato de profunda indiferença.

Estaria, então, praticando, contra um semelhante inocente, algo que condeno em meu próximo, o que tornaria meu ato, conforme já lhe disse, injusto.”

“Mas, como pretende a senhorita retirar-me daqui sem recorrer à expulsão?”

“Há, em minha casa, um quarto desocupado. É razoavelmente confortável. Me agradaria muito, se o senhor aceitasse ser meu hóspede, pelo menos, esta noite.”

Quis dizer à moça que aceitava seu convite. Quis agradecer-lhe pelo gesto. Entretanto, um choro convulsivo bloqueou-me a voz e o diálogo cessou.

Silente, Lucila conduziu-me até a sua casa, a qual se situava a algumas poucas centenas de metros da loja, e, após servir-me um farto jantar preparado por suas próprias mãos, instalou-me na alcova mencionada e nos despedimos com votos de uma boa noite a ambos.

Hebane Lucácius