NINA (ou saudades da humanidade)

Eis me aqui, doce criança que habita em mim. Nunca, inda que hoje já mais enrugado, nunca deixei o engano apossar de mim.

Sim, sim, sei que cometi muitos erros e, quem sabe, alguns acertos;

mas o certo mesmo, é que vivi! Vivi paixões e tristezas amorosas.

Vivi doces momentos de rara beleza, porém, nunca embriaguei-me da maldosa vaidade. Não aquela vaidade que nos empurra para o encontro. Quando a gente se perfuma e sai todo à fina flor. Essa até que ajuda. Refiro-me à vaidade do poder, do querer-se superior. Essa é a vaidade que cega, que escraviza, que mata!

Ah, doce criança que habita em mim, desde que comecei a entender o mundo, sempre busquei na dúvida os caminhos por onde trilhar. Nunca que gostei de certezas absolutas. A dúvida, ah, a dúvida, é ela que faz a gente avançar. Sim, se tenho dúvida, busco. A certeza acomoda.

As primeiras letras conheci num terrero de terra batida.

Minha avó, vó Nina, era dessas mulheres que não se calam. Com ela não tinha essa de homem brabo. Pois então, vó Nina, sempre que me via brincar na terra, dizia que a terra é boa pra muitas coisas. Que além de dar nosso alimento, também, serve de caderno, caderno de terra. É só pegar uma tabica, um pedaço de pau mesmo, que a gente pode escrever as letras na terra. Até hoje, sempre que tem um punhado de terra na minha frente e uma tabica, escrevo, nem que seja uma letra, mas escrevo. Vó Nina. Vó Nina era muito sábia. Ela costumava dizer que pra lidar com a terra não precisa muita coisa. Era só respeitar a terra que ela entende. Que colocar na terra esses negócios de pesticidas era ruim. Que a terra sofria muito com esses negócios. Que se colocasse adubo, esterco...bosta de animal, que isso já era suficiente e que a terra entendia.

Zé do brejo. Zé do Brejo era um caboclo parrudo. Barba longa e grossa, braços fortes e um olhar de menino. Tinha gente que falava dele olhando para o lado; tinha medo que ele chegasse...Mas ele não era disso, gostava era de prosear. Gostar de sentar em cima dos calcanhar, agachado de cócoras. Então, assim ele passava horas contando e ouvindo histórias. Era bom contador de histórias. Um dia ele contou uma que até hoje não sei se era verdade. Era assim: ele contou que quando menino, lá pras bandas do riachão, havia uma gruta e que nessa gruta morava uns seres estranhos. Alguns falavam que eram de outro planeta. Falavam, inclusive, que lá aparecia, sempre em pé em cima duma pedra, um ser que tinha os pés pra trás e que isso era sinal de que nossos passos podem ser contrários aos de muita gente, um sinal de liberdade, de saber que caminho seguir. Não sei se é isso. Nunca ninguém viu esses seres de outro planeta, nem o tal de pés pra trás, mas, Zé do brejo jurava que tinha visto. Como disse, não sei se era verdade, mas, o fato mesmo, é que eu adorava ouvir essas histórias.

Então, aqui estou, lembrando de ti, doce criança. De quantas vezes vezes eu, já em avançada idade, me recorri a você. Pedi socorro à memória - e ela nunca que me abandonou - para lembrar de ti. Lembrar de quando corríamos pelo campo, comíamos fruta do pé, nadávamos em riachos. Nossos dias não tinham fim, e as noites, nos abraçavam como se protegesse ao filho querido.

Descobrir a palavra, com a vó Nina, me deu a chance de saber que sem as letras a gente não é nada. A gente fica sendo usado por esses homens do poder e que, da gente, só querem nosso couro. Descobri que quando a gente tem conhecimento das letras nunca que eles fazem o que querem com a gente. Vó Nina sempre dizia "quem conhece as letras não vira gado de fazendeiro sabichão, não vira estribo para eles apoiarem seus pés e andar sobre nossos ombros"

Tinoco. Tinoco era um menino, filho do seu Quintão, que gostava de sair por ai, sem destino. Sempre que ele sumia, seu Quintão, que não era de boas maneiras, gritava aos quatro cantos que que quando o menino chegasse ia sofrer uma sova daquelas. Que o bicho nunca mais ia sumir. Mas era só fala de nervoso. Quando Tinoco aparecia, a sova se transformava em abraços e, no máximo, num "menino não faz mais isso".

Dona Nhanha. Ah. dona Nhanha. Na verdade seu nome era Carmelita, mas não sei porque todos a chamavam de nhanha. Bem, dona Carmelita ou nhanha, era uma senhora que todos procuravam pra tratar de mal olhado, bucho virado, quebranto, enfim, era uma benzedeira. Pois bem, inté coisas que nem os médicos conseguiam tratar, mandavam pra dona nhanha. Uns falavam que era uma bruxa, coisa ruim, gente do tinhoso. Foram um dia ao Bispo para dizer que dona nhanha fazia umas rezas esquisitas, coisa de tinhoso mesmo. O Bispo ouviu cada qual com muita paciência, calado. De modo que, ao final, depois de ouvir umas vinte pessoas, continuou calado. Provocado a falar alguma coisa, o Bispo, que não era afeito às lamúrias, nem à política do curral, andou em círculo sob o olhar de todos. Continuou calado, mas não por muito tempo. Primeiro disse que dona nhanha não era bruxa e nem era gente do tinhoso. Que os tratamentos que ela fazia ajudava muita gente e que isso estava cem por cento com os ensinamentos do Pai. Que o Pai deu aos médicos conhecimentos que os que benzem não tem, mas que os benzedeiros tem outros que os médicos também não tem. Que essa foi a forma que o Pai encontrou de dar a seus filhos meios de ajudar os outros. Que ele mesmo um dia foi até ela pedir uma benzedura. Disse ainda que falar da vida alheia ou apontar malditos sem saber se é verdade, isso sim, era ofender aos propósitos do Pai; falou olhando para cada um daquela comitiva.

Preto Veio. Preto Véio, assim chamavam seu Joaquim, um homem dos mais bondosos que a vida me presenteou. Era um homem que gostava muito de saber de como as palavras nascem. Com ele aprendi que a palavra companheiro vem do latim "companhia (cum, com), mais panis (pão)", ou seja, pessoas que repartem o pão ao andarem juntas. Desde esse dia, adotei essa palavra para toda minha vida. Companheiro passou a ser, para mim, meu modo de vida; andar sempre em companhia, com meus companheiros, meus irmãos de classe e de sonhos. Dividir o pão, mais do que dar um pedaço a alguém, significa "você e eu somos iguais, nada nos diferencia, nos faz melhor que o outro", era o que Preto Véio, sempre me dizia. Tenho saudades do Preto Véio. Ele e minha vó Nina, foram as pessoas que mais me mostraram o valor da amizade e da solidariedade. Às vezes penso que essas pessoas são árvores. Elas nascem, fincam raiz e esparramam seus galhos e raízes que vão brotar noutras terras. As lições que elas deixam, seus frutos, alimentam outras pessoas que compartilham com elas seus sonhos. É esse sonho que mantém elas vivas em nós; não é só saudade, é sonhar o mesmo sonho, porque sonho que sonha junto é realidade.

Seu Mujica. Seu Mujica não tinha apelido, era Mujica mesmo. Então, esse homem era um sujeito bem baixo, queixo adunco e sobrancelhas grossas. Eram tão grossas que algumas crianças, por curiosidade, às vezes queriam passar os dedos só para verem que não era taturana. Pois bem, seu Mujica era homem dos mais bondosos que conheci. Com ele era tudo muito simples: dormia numa cama feita de bambu e forrada de palha, a coberta era feita de pele de carneiro. Ele sempre dizia que a vida é simples, quem complica é o Homem. Que ninguém tem precisão de muita coisa, que ele nunca entendia porque existem pessoas que moram em verdadeiros palacetes, enquanto um outro tanto, "um tantão", ele frisava, morava por ai, sem eira nem beira. Que essas coisas não deviam se assim. Não era bom para o ser humano viver com essas diferenças. Seu Mujica, embora não tivesse estudado, era um homem sábio. Lembro dele coisas que marcaram minha vida como ferro na pele. Porém, havia uma frase, um pensamento, que seu Mujica não cansava de repetir, e eu adorava em ouvir. Era mais ou menos assim: " a natureza não é criação de um Deus ou de qualquer outra coisa, ela é um acontecimento, um parto, um fenômeno, um presente que o universo, como se quisesse deixar um sinal de amizade, nos deu, como uma aliança entre nós e Ele. Que nós, seres como outros seres nesse universo, deveríamos olhar o planeta como nossa morada, cuidar dele como se fosse um braço nosso". Devo confessar que esse pensamento ainda mora em mim. Nunca que deixei de lembrá-lo. Seu Mujica foi um homem que, a sua maneira, tornou o mundo mais humano e acolhedor; tenho saudades dele.

É, pois, tantas são as pessoas que, durante nossa existência, se juntam à nossa caminhada, não poderia esquecer de mencionar Dona Luxemburgo. É verdade que ninguém nunca soube seu verdadeiro nome, mas é igualmente verdade que não era Luxemburgo. O que todos sabiam é que um dia, e faz muito tempo, perguntaram à dona Luxemburgo seu verdadeiro nome. Sem pestanejar e sem meias palavras, nem vírgulas, ela, a seco, respondeu que não era da conta daquele que a questionava, que o nome era dela e pronto. Irritada com a insistência do seu inquisidor, dona Luxemburgo só se limitou a dizer que pegou o nome Luxemburgo porque ficara sabendo que era de uma mulher, lá do estrangeiro, e que lutara pela melhoria da vida dos trabalhadores e que, por isso, fora assassinada pelos homens do governo. Terminou dizendo que do dia que ficou sabendo dessa história, apegou-se ao nome porque era de uma mulher de fibra. Posso atestar, sem que me incorra em exageros e esfuziantes apontamentos sobre dona Luxemburgo, que enquanto viveu honrou o nome de quem ela pegara. Tive a tristeza de acompanhar seu esquife. Lembro que atrás do cortejo, ia uma multidão de lavradores e lavadeiras cantando as cantigas que ela mais gostava quando ia ao encontro deles. Ela dizia que com esses cantos, o trabalho ficava menos doído, que na lida da corta da cana, ou da colheita do cacau, assim como as lavadeiras na beira do rio, cantavam para espantar o sofrimento e também porque, com o canto, todos se tornavam irmãos na vida e na luta por ela. Foi sob o olhar e dedicação dela que muitos, presentes na sua partida, iniciaram nas primeiras letras. Foi através dela, e do trabalho que ela iniciou, que muitas mães deixaram de andar léguas e léguas a procura de médico. Lembro de ver as lágrimas derramadas daquela gente tão grata a dona Luxemburgo, nome inclusive gravado na sua lápide, pois, quando perguntaram qual era seu verdadeiro nome para colocar na sepultura, em coro todos responderam Luxemburgo! E assim ficou escrito na sua morada eterna: Dona Luxemburgo, mulher de nome estrangeiro, porém, da terra filha brasileira, repouse, que seus filhos continuam avante sua luta.

Chico Doido. Chico Doido era um sujeito pra lá de ingênuo. Era tão ingênuo que um dia disseram a ele que homens vindo de outro planeta iam descer na terra e que escolheram logo a casa dele para pousarem. Chico Doido ficou tão acreditado, que limpou a casa, encerou a cozinha de piso vermelho. Deixou tudo tão aprumado que teve gente dizendo que o cabra tinha arrumado namorada. E não é que Chico Doido ficou esperando a visita! Mas não é só isso não. Chico Doido era um sujeito de coração puro. Ele, que de doido não tinha nada, costumava sair à noite pelas ruas, com umas cobertas nas mãos só para cobrir gente que ele via dormindo ao relento. Ele sempre dizia, com as mãos erguidas para o céu, que não se acostumava com gente dormindo no chão, com fome, enquanto, uns doutô, embasbacados na goma, com seus carrões, saiam por ai como se fosse normal gente dormir no relento e com fome. Ele também sempre dizia: " me chamam Chico Doido, mas não sei por quê? Talvez eu seja doido mesmo; não me conformo, não aceito ver gente com fome, com frio. Velhos e crianças sem amparo. É...acho que sou doido." Ele dizia isso e saia quieto e pensativo. Quando Chico Doido morreu, depois de umas duas semanas, encontraram na casa dele um baú. Ao abrirem o baú, dentro havia muitos cadernos, em todos escritos poemas e algumas histórias. Lembro que chiquinho perneta leu uma frase, um poema curto, que falava assim: "Poema é uma explosão de sentimentos que o coração não conseguiu guardar"

Então assim foi minha vida. Uma vida sem muita fartura, sem conforto senão apenas o conforto do abraço da vó Nina. Estar entre os braços de vó Nina, era estar em completo acordo com as coisas que a vida me ofertava. A descoberta da primeira palavra. A inquietude frente aos desmandos e investidas dos que mandam. Vó Nina, assim como tantas outras pessoas, com suas lições de vida, me ensinaram a me tornar no que sou. Nunca tive precisão mais do que já tenho. Os livros, eles sim, eu tenho aos montes. Com eles conheci a bondade e a capacidade de maldade do ser humano. Conheci a poesia trágica e a de amor. Lembro de uma poesia que dizia que cartas de amor são ridículas; não seriam ridículas se não fossem cartas de amor. Concordo...cartas de amor são ridículas. O amor é algo ridículo. Quando estamos tomados desse sentimento, parece que tudo se transforma. A chuva tem mais frescor. O Sol invade nossas células e nossos olhos brilham como pequeninas estrelas. "Ficamos, nessa condição, tomados de certa resiliência com a vida que nada parece nos incomodar, tão absortos estamos nesse sentimento. É um momento mágico; tão único, que os assombros cedem espaço para a contemplação, para a imaginária certeza que aquilo nunca acabe. Porém, se tal sentimento é o mais sublime momento da vida, nunca o será de todo se, entregue às cegas a esse sentimento, esquecer-se que amar é dar-se por inteiro", dizia a vó Nina; tão sábia e tão humana.