Cheirando a novo

“Marido, que carrão lindo!. Nem vou perguntar quanto custou senão a gente briga.”

Foi assim que Zé Morcego foi recebido em casa. Era o seu primeiro carro zero km. Preferiu não falar para Camélia que estava negociando o automóvel. Queria fazer surpresa, presente de fim de ano para a família.

Toda dengosa, Camélia sugeriu:

“O primeiro passeio será até a casa da mamãe, depois na sua mãe. Certo?”

Envaidecido com o dengo, Zé concordou sem titubear. Passaram no colégio de Açucena para buscá-la.

Ao ouvir a buzina em frente de casa, Amélia saiu e viu a novidade. Ficou orgulhosa do progresso da irmã. Entrou no carro, sentiu os bancos e o cheirinho de novo e advertiu o motorista:

“Cuidado com os acidentes de trânsito. Não quero que minha família seja mais um número na estatística. A propósito, você sabia que em 2015 quase cinquenta mil pessoas morreram nas ruas brasileiras vítimas de acidentes de trânsito? Dizem que no Brasil não existe pena de morte, mas quando saímos de casa estamos todos condenados a sermos mortos por um motorista irresponsável. Outro dia numa roda com colegas, alguém sugeriu que a frase ‘acidente de trânsito’ seja substituída por ‘negligência de trânsito’. Quem pratica o acidente não é nominado, já quem sofre é chamado de ‘acidentado’. Se mudar para negligência, o condutor irresponsável pode ser taxado de “negligente de trânsito’.”

Ao que Zé asseverou:

“Para mim o pior não é morrer mas é ficar paralítico. Não se preocupe cunhada, não vou transformar nosso carro numa arma. Para mim ele é apenas um meio de transporte.”

Jacinto, que chegava com Tulipa Lopes no colo, entrou na conversa:

“Cunhado, aproveita seu carango e me leva ao hospital, hoje é a primeira consulta dessa mocinha.”

O automóvel já foi cantado em prosa e verso em músicas inesquecíveis como ‘Calhambeque’ e ‘Fuscão Preto’; foi também sucesso de bilheteria em filmes como o fusca Herbie. O que dizer então dos carrões do 007 e do Batman?

Como será possível nos encantarmos diariamente com o amor que está ao nosso lado tal qual quando compramos um carro novo? Mesmo apesar dos anos, dos vincos no rosto e a pele flácida, abraçar esta pessoa e senti-la cheirando a novo? A resposta está na verdadeira acepção da palavra "Amor". O amor requer cuidados de manutenção diária bem maiores que um carro novo, a começar pela aceitação dos seus mecanismos mais simples. O amor não subjuga, não proíbe, não pune, não sai da pista do coração. Doa-se incondicionalmente ao outro exatamente como é. Se a pista é reta desliza em segurança. Não anseia mudá-lo. Compreende suas imperfeições e silenciosamente aguarda o movimento interior do parceiro em busca de crescimento. Se a estrada apresenta imperfeições pisa no freio e não derrapa. Não condiciona, não impõe um "Se...." para que continue a se expressar incessantemente. Não cobra, não exige, não ordena. É reciprocidade. Não se condiciona a estética e a beleza, embora muitas vezes tais características, no primeiro momento sejam o chamariz para seu despertar. A verdadeira beleza reside nos olhos que a admiram. Nenhuma criatura se torna plena sem a experiência de amar e ser amado. Só o amor verdadeiro "humaniza", nos mostra a experiência do Divino na terra, aproxima-nos do que somos em essência. Se em um relacionamento perdemos a capacidade de nos encantar com o outro perdemos a possibilidade de darmos vazão aos sentimentos mais puros e profundos. Urge em nós a necessidade de nos completarmos através da experiência do 'amar e ser amado'. Não frutificam os relacionamentos em que as criaturas investem-se do sentimento de posse do parceiro que lhe compartilha a caminhada. Constranger o parceiro em sua liberdade de expressão é torna-lo hipócrita. Embora nem sempre tal hipocrisia seja intencional ou mesmo consciente. Ninguém é feliz subordinando-se ao outro. Esvaem-se pouco a pouco os aromas tão atrativos do início. Retoma-se mesmo que inconscientemente a busca, pois ninguém basta a si mesmo. O encantamento só pode ser encontrado e renovado através da sintonia verdadeira entre os seres. Reside nas profundezas do olhar que alcança bem mais além do que a imagem que se reflete na retina. Está além das máscaras com as quais revestimos nossa personalidade a fim de não expormos nossas inseguranças e imperfeições.

Respeitar o direito que cada criatura tem de 'ser ela mesma' é a única possibilidade para que o amor permaneça eternamente "cheirando a novo".

Colaboração: Ângela Fakir e Jeanne Martins.

Desenho: Ângela Fakir

http://riscoserabiscosangelafakir.blogspot.com.br/