Descanse em paz

Vovó Gardênia morreu faz coisa de uns quinze anos. Foi uma das poucas vezes que vimos papai chorar. Nos últimos anos de vida ela veio morar conosco porque mamãe a queria por perto. Vovó e papai não morriam de amores um pelo outro, mas se gostavam, embora vez por outra saía uma faísca de pilhéria entre eles.

Quando papai se aborrecia com vovó ele dizia que tinha uma sogra que havia caído do céu... porque a vassoura não aguentou o peso e quebrou. Ela contra-atacava dizendo que a filha era perfeita seu único defeito era um mau gosto pra escolher homem.

Foi em meio as turras entre papai e vovó que eu, Camélia e Jacinto fomos criados. Mamãe não se metia entre os dois, ela sabia que não era nada grave, que no fundo eles se amavam. Acabava que ríamos a beça da falsa intriga deles. Nunca ouvi papai se queixar da sogra quando ela estava ausente.

Vovó cuidou de todos nós enquanto papai ia trabalhar. Foi com ela que aprendemos as histórias de João e Maria, de fantasmas e almas do outro mundo.

Uma vez a televisão mostrou a história do senador corrupto que pagou as despesas de viagem da sogra a Europa. Todos nós estávamos na sala. Vovó na poltrona principal, tecendo com linhas e agulhas tapetes e ideias. Pai provocou:

“Como é que um sujeito faz uma coisa dessas?”

“Nem todo homem é tosco e desrespeitoso com a mãe da esposa, feito você” Vovó disse com a secura habitual quando se tratava de pai.

“O sujeito levar a sogra pro estrangeiro eu entendo, usar dinheiro do povo pra fazer isso é um crime, mas levar a sogra... Não sei, acho que é um atenuante. O que não dá pra perdoar é ele pagar as despesas da volta...” Caímos na gargalhada enquanto vovó se levantava arrastando o novelo de linha que ia deixando o rastro até seu quarto.

Antes de ela morar conosco, quando íamos a casa dela, pai dizia que estávamos indo visitar o serpentário. Quando vovó veio se mudou pra nossa casa ele dizia que tinha que comprar uma cama redonda, porque cobra dorme enrolada. Vovó era mais sutil, fazia-se de superior, dizia que não dava resposta a pai porque isso seria como latir de volta a um cachorro e gostava de contar coisas sobre um ex-namorado de mamãe que ficou morando no nordeste. “O sujeito era tão bom que até comprou um carro para a esposa.”

Quem via papai e vovó juntos tinha certeza que se detestavam. Mas nós sabíamos que isso estava longe de ser a verdade. As rusgas não eram diárias. A gente via que por debaixo das asperezas haviam gentilezas nascidas de respeito e carinho. Quando ela adoeceu e dizia que estava perto da morte, pai retrucava dizendo que ela estava enganada, que cobra vive mais tempo que gente, que ela iria enterrar a todos nós. Descobri recentemente estudando biologia pro vestibular que cobras vivem menos que gente.

Quando ela regressou do hospital, fraquinha, as pernas se negando a caminhar, pai a carregava no colo para o cômodo da casa em que a família estivesse reunida. Ajeitava confortavelmente almofadas e mantas para envolver o corpo envelhecido.

“Ah, desgramenta, aposto que morreu só pra mostrar que eu estava errado, não quis ficar pra semente, bicha teimosa...” Falou no velório enquanto secava com as mãos graúdas os olhos úmidos e tristes. Papai sempre foi do tipo confiante em seu taco. Não baixava a cabeça por pouca coisa mas fraquejou quando voltamos do cemitério.

O amor é coisa estranha, as vezes surge intempestivamente sem pedir licença para ocupar mentes e corações. Noutras nasce do respeito mútuo, conquistado pouco a pouco através da convivência diária. Veste-se das mais variadas roupagens, disfarça-se até de implicâncias e picuinhas. É o caminho inevitável de cada criatura em busca de evolução. Apesar das rusgas o amor reinava desde muito tempo entre papai e vovó.

Ela havia plantado sementes de Mulungu num velho balde, deixando-as em terra rasa - será que ela queria descansar num pé dessa árvore que florida fica cheia de beija-flores?. Notei que para brotar, elas mudaram por si só de posição afim de direcionar a parte que será raiz para a terra e o broto rumo ao céu. Nesse dia entendi o recado. Assim como a raiz precisa romper os obstáculos que se apresentem no caminho afim de alcançar o alimento e o equilíbrio; assim como a haste segue para o alto, em busca de sol e chuva... A despeito da posição que assumamos perante a vida, uma coisa é imprescindível dizer: "Fiz o que pude", e tranquilamente descansar...em paz!

Papai teve que ser o mais forte da família porque teve que cuidar da sua própria dor, da dor da mamãe e dos filhos.

Para não perder seu espírito leve, antes de deitarmos ele disse:

“Dona Gardenia vou sentir sua falta, não venha puxar meus pés e descanse em paz.”

Colaboração: Ângela Fakir e Jeanne Martins

Desenho: Ângela Fakir

http://riscoserabiscosangelafakir.blogspot.com.br/