Baú de lembranças

“Mainha hoje é dia dos avós. A televisão está anunciando uns presentes para os netos comprarem. Por falar nisso, a senhora pouco falou do vovô e da vovó.”

Camélia que chegava do trabalho completou: “Se nossos avós fossem vivos eu daria uma festa pra eles. Mãe, conte alguma coisa sobre o vovô e a vovó. Não me lembro deles.”

Mamãe parou de lavar as louças, enxugou as mãos no pano de prato com desenho de uma flor amarela e escrito terça-feira.

Virou-se para nós com ar de satisfação e começou:

"Pois bem, já que eles estão morando com Deus, façam uma oração em de vez de festa.

“Coisa que acho estranha é chegar numa loja de lembranças e tentar comprar um presente para uma avó, porta retrato, caneca, almofada... E lá vem aqueles desenhos de uma avó de penhoir, cabelos muito brancos num coque e chinelos forradinhos de tecido. Que mania tem as pessoas de igualar coisas e gentes. Por favor não deixem que meus netos me deem esses presentes. Prefiro eles aqui em casa passando o dia comigo, correndo pra lá e pra cá, comendo biscoitos e rolando de rir das cosquinhas que farei neles, ou das travessuras que faremos juntos.”

“Existem avós de todo tipo mas a avó de vocês. Ah! Ela era especial. Pensem numa pessoa além do seu tempo, em tudo! Mandava e desmandava na política da cidade, ninguém escolhia o candidato do partido sem pedir a opinião e o apoio dela. Sem seu apoio a probabilidade de sucesso nas urnas se reduzia drasticamente. Naquela época havia dois partidos, ARENA e MDB. As rixas entre eles eram enormes, como entre dois grandes times de futebol. Quando mamãe aprovava alguém, lá íamos nós fazer a campanha, e essa palavra me lembrava a cama de armar cheia de molas que mamãe arrumava ao lado da cama dela para eu dormir quando ia pra lá. Ainda me lembro do cheiro dos lençóis brancos, de algodão "Santista Ouro", com furinhos de ajour na beirada... O cheiro do sabão de bola, feitos em casa com sobras aproveitadas das vísceras dos porcos e um líquido tirado das cinzas do fogão de lenha, que colocavam em latas, furavam a base e a chuva ao cair filtrava uma coisa vermelha que usava-se no lugar da soda. Santa sabedoria popular, tudo se resolvia pelo quintal mesmo, fora o sal.”

“Voltando a política, lá íamos nós em campanha, distribuindo papeizinhos, com o modelo das antigas cédulas eleitorais, ensinando os números dos candidatos e onde escrevê-los nos quadradinhos. Povo simples, casas simples, chão batido varridinho com vassoura de folhas de palmeiras, copos de alumínio areados na bica d’água, talha de barro com água fresca... A vida era assim, com mais coisas que se podia fazer para ser feliz do que hoje. Só não podia mesmo era beber água no copo sobre o prato da talha, e para evitar isso, picotavam o alumínio em zig-zag... E eu achava lindo... Quem tentava beber nele corria o risco de cortar o beiço!”

Seus avós tinham um carro "Candango", me colocavam em cima do capô, com a mão cheinha de papeizinhos e entravamos na cidade buzinando e eu jogando os panfletos para o lado... Me achava uma celebridade fazendo isso, não tinha medo de cair, o limpador de para-brisa era meu porto seguro...

Além de política mamãe adorava coisas estranhas para mulheres de sua época, futebol, pescaria, inventar prosopopeias a serem exibidas naquelas festas de roça que duravam três dias... Era excelente contadora de piadas, tinha um jeito de contar coisas que quase fazíamos xixi nas calças de tanto rir. Contava coisas como essa:

"Maria, onde está o pente de tirar piolhos?"

"Na tábua de queijo!"

"Num tá"

"Então ta entremeio os queijos"

"Também num tá"

"Então tá debaixo do queijo grande, uaiiii"

...E morríamos de rir com tamanha bobagem.

Um dia perguntei como ela aprendeu a pescar, me contou:

"Meu pai teve 18 filhos, muitas mulheres e homens... Só deixava os filhos homens irem para beira do rio pescar. Naquela época morávamos todos em fazenda do interior. No fundo da fazenda passava um rio que dava muitos peixes e eu sonhava em poder pescar algum, mas meu pai nunca permitiu. Só iam os filhos homens pra beira do rio. Quando meus irmãos chegavam da pescaria eu ficava encantada! Tempos depois fomos morar num distrito. Chegou o momento em que foi necessário mudarmos para a sede do município para estudarmos.”

“Lá ficamos com minha irmã mais velha e papai cuidando de nosso comércio na vila. Ficava distantes oito léguas. Fazíamos a viagem a cavalo levando e trazendo os meninos nos intervalos das aulas.”

Uma vez eles saíram bem de madrugada...

Na hora do almoço estavam na beira do rio Monte Alegre, em Rio Verde, lá no Goiás. Mamãe arrumou o almoço que já tinha trazido pronto na panela embrulhada em panos, amarrada em cima com dois nós. Noutro embrulho os pratos esmaltados e os talheres. Todos comeram.

Ela tirou os pelegos dos cavalos, escolheu uma árvore com bastante sombra, estendeu os pelegos. Acomodou os meninos e papai para um cochilo. Ainda faltava muito chão... Disse que iria descer no rio para lavar os pratos. Foi!

Tirou do embrulhinho o anzol e a linha que tinha trazido escondido, amarrado numa varinha. Colocou a isca e jogou. Pouco depois correu, puxou, coração de disparou, segurou firme e ficou de pé. Fisgou o primeiro peixe de sua vida. Lutou com ele por muito tempo até conseguir tirá-la d’água. Era a mais linda Piracanjuba que tinha visto. Abraçou-a com muita força para subir o barranco, que era bastante alto. Sempre que contava essa história ela repetia com emoção nos olhos: “Lembro até hoje do rabo dela batendo nas minhas pernas. Nunca mais parei de pescar!"

Até hoje o coração aperta quando me lembro dela contando. Herdei muitas de suas paixões, pescarias, cozinhar, música, senso de humor. Meninas, tenham certeza que ela foi uma avó que queria muito que vocês fossem crianças felizes. Acho que vocês foram as netas mais felizes do mundo! A razão disso chama-se AMOR!

“Filhas, preciso parar por aqui porque essa conversa me trouxe uma enorme saudade-lembrança dela. Para mim saudade é lembrar de quem amamos, com tamanha alegria, que até inunda nossa alma! Se não inundar, não vale. Cada uma dessas memórias são como ainda receber seus abraços, ver seu sorriso, sentir seu cheiro! Sinto-os aqui neste momento. Nada como sermos queridos e desejados, isso nos deixa plenos de amor verdadeiro que faz de nós um abarrotado baú de lembranças!”

Colaboração: Ângela Fakir e Jeanne Martins

Desenho: Ângela Fakir

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