Se lambuzar de amor

“Vamos logo mamãe, senão vamos chegar atrasadas”.

“Calma menina, preciso me enfeitar, bem bonita”.

“Hoje quero dançar a noite toda, faz tempo que não saio da senzala”.

“Camélia, tome jeito e olha o que diz. Você tem uma vida de liberdade, não é nenhuma escrava. Cadê Amélia?”

“Está lá na porta da rua esperando a gente. Já botou os lacinhos no cabelo, pintou o dente da frente de preto e já fez as brotoejas no rosto, tá toda faceira com o vestido de chita com flores amarelas e vermelhas”.

“E seu pai, já foi? ”.

“Já sim. A senhora sabe que ele não espera. Mãe, são poucos os homens que entendem a demora de uma mulher em se arrumar. Se eles soubessem como é gratificante ver o nosso homem com toda paciência esperando a gente, eles não nos apressariam nem se aborreceriam. Gentileza e saber dança são duas coisas que as mulheres adoram num homem. Mas o indivíduo é tão cabeça oca que não vê que estamos nos arrumando pra ficarmos lindas ao lado dele... se impacienta e estraga tudo. Na próxima encarnação quero nascer homem. Basta botar uma cueca, uma camisa, passar o pente no cabelo e pronto. Só que vou sempre abrir a porta do carro, puxar a cadeira, comprar mimos”.

“Mãe, sabe aquela professora que morava aqui na rua? Semana passada encontrei ela. Perguntei como iam as coisas, os filhos o casamento. Ela disse que o marido parou de puxar a cadeira e abrir a porta. Então, ela viu que estava na hora de acabar, separou tem poucos dias”.

O arraiá de São João ficava na praça de PazAmor. De casa ouvíamos as músicas. A que eu mais gosto é aquela da Maria Betânia quando ela diz que enfeita a casa para receber seu amor do mesmo jeito que a gente!:

“Tantas vezes eu soltei foguete

Imaginando que você já vinha

Ficava cá no meu canto calada

Ouvindo a barulheira

Que a saudade tinha

Tirei a renda da naftalina

Forrei cama, cobri mesa

E fiz uma cortina

Varri a casa com vassoura fina...

Você chegou no amiudar do dia

Eu nunca mais senti tanta alegria...

Nosso amor é tão bonito, tão sincero

Feito festa de São João”

Hoje estou muito feliz. Quero pular fogueira, dançar quadrilha, beber quentão e, se aparecer um candidato, vou me casar com aquele que me mandar um correio elegante apaixonado. Não precisa de muita coisa escrita, bastam palavras sinceras. Se eu senti sinceridade nas palavras dele, pronto, este será o meu último homem. Com ele quero me lambuzar na saliva do nosso beijo, que ele me lambuze com a maçã do amor, da corzinha do nosso desejo.

Sairam rumo a praça, Camélia saltitando na frente.

"Mãe, o pai pegou a mesa do lado da banda"!

Sentaram-se. Camélia fixou o olhar no fole da sanfona, que esticava e encolhia, arrancando um lamento. Que coisa a música faz com gente. Xote então, de zabumba, triângulo e fole entra na alma, revira logo os pensamentos. Lembrou seu verso preferido: "Quero o destino das águas dos oceanos, me evaporando p'reu chover no riachão, mergulharia no riacho de salobro...! Oh mana deixa eu ir..."

"Camélia, vamos ver as barracas?"

"Vaaamos"

Os varais de bandeirinhas à luz da fogueira coloriam a praça inteira. Mas os balõezinhos de papel crepom... cada um de uma cor, com luzinhas dentro, eram um sonho! Pareciam vagalumes alumiando a noite escura. A fumaça da lenha crepitando na fogueira, ardendo no olho e o cheiro do milho assando, humm... de juntar água na boca!

"Olha, Amélia, o homem do quebra-queixo!!! Eu quero!!! Moço, me dá um, esse pedaço com casquinha de coco queimado em cima!"

Que sabor tem esse doce! É tão puxento que não nega o nome que tem! A gente morde, espicha, espicha, gruda no dente, que custa a arrancar o pedaço. Lambuza o beiço, labuza os dedos, lambuza até a alma da gente!

"Ôiiii, moça!!!" Você que é a Camélia das trancinhas?"

"Sou Camélia sim e tô de tranças, com fita amarela e tudo, e daí? ....Larga minha saia menino!", respondeu explodindo feito traque novo, assustando o guri risonho, bochechas vermelhas suadas que lhe puxava a barra da saia.

"Correio Elegante! Esse coraçãozinho vermelho aqui é pr’ocê"!

“Quem mandou, será quem? Hein!”

“Não conto, não conto!!!" Entregou e saiu alegre igual rojão quando clareia o mundo.

O coração de papel todo picotadinho feito renda, dobrado em dois. Letrinhas douradas, salpicado em purpurina escrito assim:

"Camélia, vou te esperar na barraca do tiro ao alvo as nove e meia! Se me der coragem chego de mansinho, pertinho do seu ouvido e vou dizer: -Te gosto tanto, tanto mesmo, que nem sei o que fazer!

PS.: Tô de camisa xadrez vermelho e branco”.

"Olha isso Amélia, que atrevido. Deve ser um coió, se fosse romântico marcava na barraca do beijo!" Retrucou lambendo os dedos lambuzados do doce.

Esse negócio de "nem sei o que fazer" mexeu com ela, seria um coió sincero?! Sinceridade desarvora Camélia tal qual sabor de quebra-queixo. Coração explodindo junto com os fogos da festa, tamanha vontade de se lambuzar de amor!

Não conseguia sequer imaginar quem poderia lhe mandar esse bilhete. De repente uma imagem lhe vem à mente, de anteontem na saída da escola. Um magricela em pé escorado no poste, pernas cruzadas, olho no olho, sorriso cínico, rindo...

Ria dela ou pr’ela? Essa foi a primeira vez que viu o Zé!

E hoje, você vai se lambuzar de amor?

Colaboração: Ângela Fakir e Jeanne Martins

Desenho: Ângela Fakir

http://riscoserabiscosangelafakir.blogspot.com.br/