AS TRÊS MARIAS - capítulo 14 - LEOPOLDO E HERMÍNIA

Após o parto, Berta entrou num estado de prostração tão profunda, que teve de ser internada e entubada, permanecendo inconsciente por vários dias. Enquanto Sal não saía de seu lado, no hospital, Ingrid se encarregava da criança, que era saudável e já estava em casa.

Uma vizinha, que aleitava seu filho naturalmente, e produzia com sobra, forneceu todo o excedente para o pequerrucho. A alegria de ter vida nova por perto, tinha de ser dividida com a preocupação que advinha da situação de Berta, que não apresentava qualquer melhora.

Exatamente vinte dias após o parto, num momento em que estavam todos em volta do garoto adormecido, a indefectível luzinha, que prenunciava a presença de Ana, surgiu sobre o berço, e apesar de não emitir som algum, os presentes ouviam, dentro de suas cabeças, a voz da querida ausente, a lhes informar que na manhã seguinte Berta já estaria fora de perigo e começaria a se recuperar. Pedia que, quando de seu retorno ao lar, não lhe perguntassem nada, nem lhe cobrassem atitudes, em relação à criança, pois havia muito a resolver, e mais adiante tudo seria esclarecido, mas naquele momento urgia apoiá-la.

À primeira luz da manhã seguinte, Sal, que dormia num sofá, ao lado de Berta, no quarto do hospital, acordou e viu que sua amada estava de olhos abertos, sorrindo. Foi até bem perto e, antes que dissesse algo, ela o cumprimentou com um bom dia tranquilo e um beijo suave. Ele teve de disfarçar para que a menina não visse seus olhos úmidos, e chamou o médico, que a examinou, constatando a remissão do mal que a assolava. Mais dois dias foram necessários, em observação, para que recebesse alta e pudesse voltar ao lar.

Todos a esperavam à porta, e se surpreenderam com a disposição com que já andava, sem demonstrar mal estar algum. Ninguém mencionou a criança, acomodada nos aposentos de Ingrid, e Berta parecia nem se lembrar da gravidez ou do parto. Sal, que fora avisado sobre a advertência de Ana, também evitou tocar no assunto, apesar de estranhar o que ocorria. Os dias foram passando e nada se alterava nesse sentido. Quando o garoto chorava, e seu choro podia ser ouvido em toda a casa, a menina parecia nada ouvir. Por mais estranha que aquela situação parecesse, ninguém queria provocar um incidente, e Sal, por mais que se sentisse mal e atordoado, fez o mesmo que os outros, apoiando o alheamento de Berta.

Poucos dias depois, estava ele com sua companheira numa rua próxima, passeando, e uma menina, de pouco mais de dois anos, veio até os dois pedir dinheiro. Acharam estranho que estivesse só por ali, então lhe deram uma moeda e a seguiram. Após a esquina, a garota entregou o que recebeu a uma mulher estropiada, sentada junto ao meio fio, que cheirava uma lata de cola. Ela pegou a moeda, xingou a menina, deu-lhe um safanão, que a derrubou com violência, e ainda lhe cuspiu na cara, diversas vezes.

Sal socorreu a pequena, que chorava, entregou-a a Berta, que a amparou, agarrou com força a mulher e chamou a polícia. Foram todos parar na delegacia. Durante o interrogatório, o delegado, que já conhecia a detida, sabia que a criança não lhe era aparentada, e pesquisando um pouco, descobriu ser órfã de uma sua vizinha, morta recentemente por alcoolismo. Fora levada para um lar de menores, e de lá fora retirada por aquela mulher, que se declarara tia.

Dali a pouco chegou a assistente social, que perguntou se Sal e Berta gostariam de ter a guarda provisória da pequena. Surpreso com a pergunta, ele olhou para sua garota, que nem pestanejou e já respondeu, afirmativamente. Berta e a menina não se largavam, todo o tempo em que ali estiveram. Ao perguntar sobre o nome, souberam que ela não havia sido registrada, e que poderiam aguardar alguns meses, para decidir sobre a guarda permanente e, em caso positivo, registrá-la como filha, escolhendo um nome de seu agrado.

- Pois ela se chamará, daqui pra frente, Hermínia. (assim resolveu Berta)

Ao chegarem em casa e contarem o ocorrido, comoção e estranheza, por verificarem que ela se afeiçoara a uma criança estranha, mas não perguntava nada sobre o seu. Porém, seguiram com o que foi pedido por Ana, e Sal, por mais que se afeiçoasse à menina, não podia se conformar em manter seu garoto na obscuridade. Foi o destino, mais uma vez, que resolveu a questão. Hermínia ouviu o choro de Leopoldo (esse era seu nome), foi até ele e fez carinho, cantou para ele, até que Berta, procurando-a, encontrou-a junto ao berço, dando de cara com seu filho. Foi chegando de mansinho, aparvalhada, sem atinar com o que era aquilo.

Hermínia pegou sua mão e colocou no rosto do bebê. Ao tocar sua pele, ela sentiu um baque forte e começou a lembrar de tudo. Chorando, pegou o menino no colo e o embalou.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 03/07/2016
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