Tenho uma proposta

“Tenho uma proposta”

“O quê?”

“Sim, Amélia, tenho uma proposta pra te fazer. Volta pra minha vida.”

Hoje vi Amélia. Ela estava tão bonita. Não era a beleza das roupas, o uniforme que ela usava era o de sempre. O cabelo comprido preso no mesmo coque. O mesmo jeito de andar, ligeira, as pernas compridas bem esticadas num compasso cadenciado. Parecia desfilar. Mas seu rosto trazia uma coisa diferente. Os olhos marrons de pestanas compridas e curvadinhas pra cima pareciam sorrir.

Ela me acenou do outro lado da rua. Lembrei do dia em que a feri com uma ameaça ridícula porque ela acenara para outro homem. Como deixei escapar a mulher da minha vida? Como deixei minhas cobranças e meus ciúmes descabidos destruir aquele amontoado de sentimento bom que ela tão bem sabia demonstrar?

Continuou sua caminhada, quis correr até ela. Falar da saudade que me castigava desde que ela se foi, de todas as coisas boas que via nela e não dizia por medo de dar asa a ela. Medo de ela voar pra longe de mim. Tudo em vão. Amélia sempre teve asas. Só ficou perto de mim o tempo que eu soube cativar o desejo dela de estar ali. E ficou tempo demais. Amélia voou feito ave que se espanta com um movimento brusco e bate asas pra longe.

Criei coragem e corri até ela. A segurei pelo braço antes de ela sumir por dentro das grades de ferro do portão de um colégio. Todo colégio tem mais coisa de penitenciária do que de igreja: grade horária, pátio, portão de ferro, Diretor...

“Marcos, como você pode ver estou chegando ao colégio.”

Ri com deboche.

“Estudar depois de velha? Isso não tem cabimento. Depois de passar o dia trabalhando ainda tem coragem pra vim estudar?”

No fundo ele tinha certa razão. É verdade que está complicado estudar. Acordar as cinco da manhã pra chegar no horário no hotel. Trabalhar o dia inteiro, comer a marmita fria, sair do trabalho, ir pra aula, chegar em casa tarde da noite, e recomeçar ao amanhecer... E o pior é a matemática. Ficar na aula atenta, fazendo um esforço pra entender e não entendendo nada.

Não sei dizer porque tanto esforço, mas sei que estudar me faz bem. Não sei se o bem que faz vale o esforço. Mas tem desejos na vida que nascem dentro da alma da gente feito semente. Surge pequenininha, aí encontra solo fértil e vai crescendo, vai de broto a arvore frondosa, raízes profundas. Essas sementes de sonhos são importantes demais pra gente ignorar ou abandonar. E acaba que na alma de cada um tem um bosque de desejos. Árvores de liberdade, árvores de conhecimento, árvores de amores, árvores de tudo quanto é desejo bonito que existe. Quando a gente desiste de um sonho, deixa de fazer o que tem de fazer pra realizar um desejo, ficamos carregando na alma os troncos e galhos pesados e tristes. Não deixa de ser bonita uma árvore seca, assim como não deixam de ser bonitos os sonhos abandonados. Mas é uma beleza triste, sem vida.

Dentro de mim agora tem uma árvore crescendo, e quero ela bonita, com galhos graúdos, folhas viçosas e cheinha de flores. Não importa que pra isso tenha que ser camareira e jardineira. A gente não tem que ser um só uma coisa na vida.

“Marcos, você sabe que te amei, que você foi o homem mais importante da minha vida. Mas você quebrou tudo isso quando armou um soco para me acertar. Naquele dia eu peguei você, coloquei dentro de um saco de pão, joguei cem quilos de dinamite dentro, acendi o fósforo e joguei pro alto. Agora preciso entrar porque já estou atrasada.”

“Amélia, te peço mil desculpas, foi um momento de fraqueza, de estupidez.”

“Está mil vezes desculpado”.

“Amélia, isso é tudo que você tem pra me dizer?”

“Sim. Eu não tenho uma proposta”.

Desenho e colaboração: Ângela Fakir

http://riscoserabiscosangelafakir.blogspot.com.br/