A Pane

Acordou sobressaltado. Precisou de alguns segundos para recordar onde estava. Moveu o mouse para reativar o sistema. Mirou a câmera presa ao monitor, à sua frente. Trazia ainda marcas do teclado num dos lados do rosto, e no outro um rastro branco, de baba. Não soube por quanto tempo estivera dormindo. Esperara, ávido, por respostas, ou melhor: reações. Precisava ir ao banheiro. Apressou-se, não quis perder tempo lavando as mãos. Quando voltou, a tela exibia o navegador, ainda a última página: 14569987647 amigos online. Atualizou-a. Pânico! Verificou programas e aparelhos, correu ao telefone fixo: ‘Mudo também?!’, Vasculhou o bolso da calça: ‘Smartphone fora de área? Impossível!’ Reiniciou todo o sistema e ‘Ainda sem conexão?!’. Alguma coisa acontecera enquanto dormia. Tinha que fazer algo, não podia ficar alí parado, vendo seu mundo ruir. Passaram-se dias, e nada. As reservas de comida chegaram ao fim. Não entendia o surto, nada funcionava: internet, telefone, TV a cabo, nem mesmo o termômetro digital, lá fora. Energia elétrica ainda havia: ‘Uma esperança?’. Percorreu, desolado, a longa lista de amigos, agora sem qualquer serventia. Até para pensar necessitava de auxílio. Buscou em desespero, na lista de programas, um editor que funcionasse sem a rede. ‘Viva os TXTs!’ Daquele desastre, tentava ainda fugir à terrível idéia de, pela primeira vez em anos, ter que pôr a cara lá fora, ter que sair e encarar pessoas — ‘Ai que horror!! Pessoas lá fora...’ — Se houvesse alguém, pensou. Não queria mais pensar. Fechou o editor e, naquele momento, desejou com ardor ser um pixel, uma partícula qualquer que não tivesse sentido quando internet non c’è. Antes de desistir, comando final: num surto de coragem puxou os fios. Escureceu.

“Non c’è” (Italiano): usa-se para expressar ausência ou inexistência de algo ou alguém.

----------------------------------------------------------------------------

Se deseja reproduzir este texto, favor respeitar a licença de uso e os direitos autorais. Muito obrigada.