Haviam duas civilizações onde ninguém seria capaz de imaginar.

Haviam duas civilizações onde ninguém seria capaz de imaginar. Estavam​ além do horizonte, onde o sol se punha, onde as garças sumiam depois de uma alvorada.

Estavam no topo do mundo.

Mas elas estavam lá.

E eram habitadas por simples pessoas, de simples educação, de simples imaginário.

Eram também inacessíveis.

Há centenas de anos, as pessoas que moravam lá foram separadas do mundo por um terremoto.

De um lado, as gigantes cordilheiras inalcançáveis, de outro, uma cratera de dezenas de metros.

Não havia como entrar, não havia como sair, mas elas​ estavam​ lá.

Ninguém sabia o porquê, mas as duas civilizações se odiavam. Elas viviam separadamente, não mantinham contato, e eram subsistentes.

Havia somente uma coisa que essas civilizações mantinham em comum: Um livro e um ancião.

As duas civilizações elegiam um homem cada, que ao completar 40 anos, estaria apto a proteger o livro e virar o ancião daquele lugar até sua morte.

Porém, as duas civilizações só puderam chegar em um consenso, se tivessem a oportunidade igual de ter um representante como ancião daquele lugar: O mais apto de cada aldeia iria lutar até a morte um com o outro, e o vencedor iria ser sustentado e iria viver até a morte para proteger o livro.

O que tinha naquele livro? Não sabemos. A única informação fornecida, era que fora escrito por um antigo líder de uma das aldeias.

Também sabiam, que há centenas de anos, naquele lugar, as pessoas viviam em harmonia, eram como uma só.

Qual foi o motivo dessa separação? Também não sabemos.

A informação mais importante de todas era que somente uma pessoa poderia ler aquele livro. Somente uma pessoa teria a capacidade de ler aquele livro.

Essa pessoa seria a capaz de livrar as duas aldeias de um terrível mal que assolava ambas as aldeias há milhares de anos: A cegueira.

Acreditava-se que Deus, para testar seu poder e influência, fazia com que o segundo filho de cada casal nascido naquela terra, nasceria cego, e assim, seria incapaz de dar continuidade ao sentimento de pureza humana que ambas as aldeias tinham desde seu nascimento.

Uma solução muito simples, pareceria não ter o segundo filho, mas aquele lugar era muito pequeno, e tendo filhos únicos, os casais daquele lugar uma hora não iriam conseguir se manter em número, e não iam deixar descendentes. As vilas morreriam.

Então, o primeiro filho nascido depois do primeiro eclipse lunar anual, teria que ser sacrificado a Deus, para se livrarem desse mal tão amedrontador.

Só que, naquela noite, nascia o filho proibido. E era eclipse lunar.

Montgastieu era seu nome. E ele era cego, mas ninguém sabia. Seu pai e sua mãe não eram da mesma aldeia, e, segundo a lei grafada há tempos naquele lugar, a junção de pessoas que não fossem da mesma aldeia, acarretaria em morte para ambos. Descobriram 10 meses depois, e depois de seu filho nascer, foram assassinados.

E assim aconteceu.

Só que Montgastieu continuou vivo, recuperado e escondido durante anos por Stenna, uma moradora daquele lugar.

Porém, sem saber que Montgastieu era a criança a ser sacrificada, as aldeias continuaram a sacrificar bebês inocentes durante 15 anos.

(Uma ironia, notada pelo autor, é que segundo as leis passadas de geração em geração, se esse filho nascido pós-eclipse lunar, não fosse executado, Deus iria castigar as aldeias.

E não foi isso que aconteceu.)

Stenna sabia de tudo desde o começo, mas as pessoas das aldeias não poderiam saber. Sacrificariam Stenna e seu filho adotivo, sem hesitar, por dois motivos: Não poderiam aceitar um aldeão impuro naquele lugar, muito menos o filho a ser sacrificado, mas que por algum motivo, continuou vivo.

Montgastieu, sozinho, tinha uma árdua missão.

Deveria ter a confiança de todos os aldeões para que durante um ano, ninguém fizesse o rito pós-eclipse e assim, ele provasse que a antiga superstição era falha.

Para isso, ele teria que se revelar como o filho que deveria ser morto. Ele sabia que todos descobririam sua cegueira.

Sua mãe Stenna morreria, ele próprio morreria.

Talvez, por algum milagre, ele acreditava que poderia convencer a todos e continuar com vida.

Sua mãe não teria a mesma sorte.

Então, durante o eclipse lunar daquele ano, Montgastieu, com o apoio e compreensão serena de sua mãe, tomou a seguinte decisão: Ele iria impedir o assassinato do próximo filho e mostraria a todos quem ele realmente era.

E assim ele fez. E assim sua mãe foi descoberta e assassinada.

Escrachado por toda a população presente no ritual, teve que fugir a pedradas e às cegas, por causa de sua cegueira, mas plantou a dúvida na cabeça de algumas pessoas das aldeias, que dias depois, se uniram secretamente para conversar com Montgastieu.

Eles aceitariam sua cegueira, e em troca disso, Montgastieu deveria provar que era o filho que deveria ser assassinado.

Depois de muita conversa, Montgastieu disse as informações sobre seus pais mortos há 15 anos que Stenna o tinha passado, e tudo que ele sabia sobre seu passado que sua mãe adotiva o tinha falado.

Para sua surpresa, convenceu todos os 10 ali presentes com suas histórias verídicas passadas.

E assim começou o trajeto de 4 anos até o dia do desfecho final.

Todos os 10 naquele dia presentes, durante um processo lento e demorado, convenceram pessoas confiáveis nas aldeias que não entendiam a aversão à cegueira de Montgastieu e aceitariam sem nenhum problema.

E assim se passaram dias, meses, até que, dois anos e três meses depois, grande parte das pessoas das aldeias se uniram e resolveram aceitar conversar e acreditar em Montgastieu.

Foi naquele dia 12 de setembro, onde nasceu o primeiro filho não sacrificado que deveria passar pelo ritual.

Apreensivos, prenderam Montgastieu em uma cela escura, até descobrirem o próximo filho a nascer cego, para assim, descobrirem que Montgastieu estava errado. Assim, o matariam e continuariam o rito anual para sempre.

Mas isso não aconteceu.

Durante dois extensos anos, duas crianças foram salvas da morte, mas nenhum filho amaldiçoado pela cegueira nasceu.

Acreditavam que Deus havia morrido, ou até que havia cansado de punir aquele povo, mas se recusavam a acreditar que aquela maldição era falha.

Até que decidiram aceitar a verdade de uma forma pacífica.

Aceitaram que Montgastieu era Ele, a pessoa que livraria as aldeias dessa terrível maldição, mesmo que ela, percebendo os mais espertos, nunca existira. Mal os homens perceberam também, que as duas aldeias se uniram pela primeira vez em gerações, para resolver esta situação inusitada.

Só que Montgastieu era cego, era incapaz de ler o livro, e assim, o ancião uniu as aldeias para ler em alto e bom som:

"Eu não sei quando estão lendo isso, mas espero que tenham percebido o que acabaram de fazer.

Meu pai e meu avô me ensinaram a odiar e a negar os imperfeitos. Todos que nasciam com deficiências físicas e mentais eram logo descartados. Eu nunca entendi isso, e nunca percebi que quem realmente era deficiente, eram essas pessoas que negavam o próximo, que odiavam o diferente.

A história que me contaram quando eu era criança, é que esta separação de aldeias, que acredito eu esteja acontecendo neste exato momento que está lendo isso, começou há 80 anos, quando o primeiro pai aceitou um filho deficiente. Esse filho não tinha nenhum dos membros externos.

Esta situação separou de imediato as pessoas da aldeia.

As pessoas que defendiam a atitude desse pai fundaram uma aldeia, e os que repudiaram a atitude desse pai, fundaram uma outra.

Só que esse pai e esse filho em pouco tempo acabaram morrendo, e ao longo de 3 gerações, as pessoas acabaram esquecendo o motivo da separação das aldeias. Todos, sem exceção, voltaram a odiar o diferente.

Hoje, acredito que quem pôde abrir isso seja um descendente meu. O porquê de eu saber disso é muito simples: Acredito do fundo do meu coração, que quem conseguiu abrir esse livro, seja um cego que vocês aldeões aceitaram, para livrar vocês da maldição que nunca existiu. Eu acabei de inventar essa "maldição". Meu filho neste momento, está empesteando a cabeça de todas as crianças nessa vila de que esta maldição existe. Mas não existe.

Veja bem, vocês entraram em contradição.

Aceitaram um deficiente para se livrarem de uma maldição que deixaria seus filhos deficientes.

Eu sei muito bem o mal que fiz, matando crianças inocentes durante gerações, só para alimentar essa fé cega que vocês tiveram até hoje, e peço por Deus, que vocês me perdoem. Sei que não mereço.

Mas, vocês percebem uma seguinte coisa? A pessoa capaz de unir vocês todos, depois de gerações e gerações, foi o mesmo tipo de pessoa que separou as duas aldeias.

Um cego foi o mais capaz, foi o mais corajoso, foi o mais guerreiro. Ele é mais que todos vocês. Por que continuam a acreditar que ele é inferior a todos vocês? Ele é diferente, mas ele é tão especial quanto todos vocês, que continuam a achar que são perfeitos.

Vocês podem me perguntar como eu sei que é um cego que levou a toda esta situação.

Meu irmão era cego. Ele era o primogênito. Ele foi assassinado.

O meu tio era cego. Ele era o primogênito. Ele foi assassinado.

Existe uma anomalia, Deus sabe o porque (n.a: hoje identificamos como falhas genéticas hereditárias), que todos os filhos primogênitos de minha família nascem cegos.

Quem foi o responsável por isso tudo é meu descendente, e espero que um dia vocês leiam isso.

Também espero que já estejam curados dessa terrível doença espiritual: O ódio.

A pessoa que vocês deveriam odiar, a pessoa que vocês deveriam desprezar, foi a responsável por unir todos vocês novamente. E espero que amem mais. Amem o diferente, amem qualquer um. Apenas ame."

Durante centenas de anos, esta aldeia, no mundo inteiro, foi a civilização mais perto do que podemos chamar de utópica.

Eles se uniram e deixaram o ódio de lado. Eram caridosos, bondosos e coletivos. Eram uma quase perfeição.

Hoje, essa aldeia não existe mais, mas você mesmo pode criar ela, dentro do seu coração.

Nada é impossível, o ódio não leva ninguém a nada.

Seja o responsável por iniciar e levar as pessoas próximas a você a construir essa aldeia.

Alcance a utopia.

Leonardo Nali
Enviado por Leonardo Nali em 04/09/2017
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