A conversa com Sara Sanches



A caminho do mercado recebi a ligação de Neusinha me agradecendo a indicação para ficar no meu lugar. Ela disse que Ernest estava avaliando futuros substitutos e que daria prioridade a ela. Contei para minha ex-colega de trabalho sobre meus novos planos e de como estávamos empolgados. O que eu ouvi, como sempre foi um apoio incondicional. Neusinha é dona de um coração de ouro, sentirei falta dela.

Olhei a lista feita por Michel e decidi começar pela área infantil. Fraldas, leite, papinhas, pomada para assaduras, lenços umedecidos e uma chupeta para o Miguel. Lembrei de Michel debochar dizendo que eu me perderia fácil. Não vou dar esse gostinho para ele.

- Hã... – Olhei para a prateleira com seus milhares de marcas, tipos e preços. – Eu não sei qual é a marca que ele toma. Meu Deus...

- Ele tem quantos meses? – Olhei para o lado e vi uma mulher de meia idade olhando a parte de fraldas.

- Vai fazer 11.

- Leve esse aqui. – Ela se aproximou e apontou para uma lata de leite de 1kg. – Mas nessa idade leite é só para enganar. Bom você é mãe, deve saber do que estou falando...

- Na verdade ele não é meu filho, eu o amo como se fosse, mas é filho do meu namorado.

Ela balançou a cabeça, assentindo. Observei melhor seu rosto e algo nela não me era estranho. Os cabelos longos e negros, o olhar extremamente compenetrado e os olhos... Esses olhos.

- Eu conheço a senhora.

Como se esperasse por isso, ela continuou me olhando. Recuei, assustada. Não é possível que agora a mãe vai resolver me atacar. Será que só a ruindade da filha não é o bastante?

- Ao contrário da minha filha, eu não vou te fazer mal, Maria Luíza. - Congelei. A mãe de Elena apesar de abatida, ainda era mesmo uma bela mulher. Continuei na mesma posição defensiva.

- O que a senhora quer? Estava me seguindo?

- Podemos tomar um café? Eu prometo que farei essa conversa valer a pena.



(...)


Entramos numa cafeteria simples que ficava próxima ao mercado. A decoração era estilo americana, móveis claros, plantas de parede e tinha um ar bastante aconchegante

- Oi, Santos!

- Sara, querida! – Eles trocaram um abraço rápido. - Quanto tempo! Fiquem à vontade.

O homem a quem Sara se referia como Santos era um senhor de meia idade e também o dono do local. Ele era gordinho, altura mediana, uma barba bem aparada e olhos gentis. Nos conduziu até uma mesa.

- O que vai beber? – Ela me perguntou, olhando o cardápio.

- Um café.

Sara buscou um garçom com o olhar, e foi prontamente atendida. Um rapaz alto, de cabelos nos ombros e olhos castanhos claros se aproximou.

- Dois cafés!

- Claro.

Ela esperou o garçom se afastar para começar a falar.

- Eu sei o quanto isso pode ser estranho para você. – As mãos foram a para a mesa, notei que havia um corte cicatrizado. – E na verdade, eu tive que pensar muito para tomar essa atitude.

- Com licença... – O garçom trouxe os dois cafés.

- Antes de tudo, eu preciso te contar uma história.

- Sara, eu...

- Por favor, Maria Luíza. Eu sei do que a minha filha te fez. Só quero que você entenda a história.

- Tudo bem.

- Antes de qualquer coisa, saiba que Elena não nasceu assim. Algo nela a tornou esse monstro. Eu e pai dela a planejamos com muito amor. E foi assim durante muitos anos do meu casamento... – Ela bebeu um pouco do café enquanto se esforçava para dar continuidade a história sem desabar. – Até que um dia o pai de Elena chegou em casa dizendo que precisava conversar comigo. Qualquer mulher sabe o que isso significa, ainda mais quando o seu casamento não é o mesmo. A maternidade criou uma barreira entre eu e meu ex-marido, anos depois fui descobrir que a barreira era a Elena.

Ela deu algum tempo para que eu processasse toda a informação.

- E como isso é possível?

- Quando Elena veio ao mundo a primeira pessoa que ela olhou nos olhos foi o pai. Eu vi aquela troca mútua de um afeto genuíno, um amor poderoso que nem todos eram capazes de fazer parte ou sentir. Eu não era parte daquilo. Elena sempre idolatrou o pai. Foi assim até o último dia que eles se viram. Até mesmo quando soube que o pai nos deixou para morar com um homem, ela nunca deixou de vê-lo como um herói. Inclusive ouvi de Elena que eu era a responsável pelo fim do meu casamento.

Sara precisou respirar fundo para continuar, porém, uma lágrima desceu pelo seu rosto.

- “Se você tivesse sido uma boa esposa meu pai nunca teria ido embora, Sara. Você é a culpada! Eu nunca vou te perdoar.” Eu pedi para o pai dela ir embora sem olhar para trás, e foi o que ele fez. Não o deixei se despedir dela. Me arrependo do que fiz? Sim, me arrependo, mas quem é que pode falar do coração de uma mulher magoada?

Concordei com um aceno de cabeça. Era a mais pura verdade.

- Ele foi honesto comigo, mas meu Deus, Maria Luíza! Eu dediquei toda a minha vida para fazer aquele homem feliz. Eu dei uma filha, dei a minha juventude e ele simplesmente chega um dia e me fala “eu conheci alguém que me mudou por dentro”. Não se importou com os meus sentimentos, não se importou com o fato de que a filha era uma criança e que precisava dele... - Ofereci um lenço de dentro da minha bolsa para ela. – Obrigada. Desculpa, esse assunto sempre me deixa muito nervosa.

- Imagina.

- Descontei todas as minhas frustrações em 3 casamentos com homens ricos para bancarem a minha vida e a da Elena, pois antes de me casar com o pai dela eu deixei até a minha faculdade. Eu realmente me entreguei de corpo e alma a ele. Se isso foi um erro ou não jamais saberei. Passei a beber, usei muitos remédios, tudo para esquecer a dor que meu primeiro casamento me causara e depois porque não queria ver o que me acontecia. E de tanto eu não querer ver, teve uma hora que realmente parecia não ser de verdade. Devia ser alguma sequela da depressão que desenvolvi, não sei.

Inicialmente não conseguia entender porque Sara queria que eu soubesse toda aquela história, mas deixei que continuasse.

- Elena perdeu a virgindade com meu primeiro marido e manteve relações com ele por 2 anos, durante todo o meu casamento. Ela sempre foi bonita. Toda a beleza dela é minha, tendo pouco do pai. Elena poderia ter qualquer homem, mas o que ela realmente queria era me punir. Na cabeça dela transar com todos os homens que eu me envolvesse era uma forma de punição. Eu sabia de tudo aquilo, mas fingia não ver porque achava que ela já sofria muito e também por questões de interesse. Eu tinha uma vida maravilhosa e os remédios me faziam esquecer tudo. Até que vieram as separações. Louis, Pablo e Henry. Ela os acusou de estupro e disse que se eu não a apoiasse iria até a polícia me denunciar como cúmplice de cada um deles. Nenhum deles podia contra a Elena. Eu não podia contra a Elena. Anos depois descobri que quando ela os denunciava era porque eles totalmente apaixonados queriam ficar somente com a minha filha... Nunca foi o plano dela ficar com qualquer um deles. Elena sempre amou o Michel. Ela sempre teve uma obsessão por aquele rapaz. Desde a primeira vez que eles se viram na escola sempre a ouvi dizer que um dia ele seria só dela.

Sara chorava sem parar, mas conseguia manter a conversa. Era uma mágoa superada, mas não esquecida.

- Eu me sinto muito mal por tudo isso, Maria Luíza. Nunca perdoei o pai de Elena e também nunca me perdoei por ter sido uma mãe ausente na fase mais difícil da vida dela. Eu a deixava com psicólogos, com remédios, deixava Elena só, a mercê de sua própria mente. Depois da formatura escolar ela simplesmente foi embora, só fui ter notícias dela anos depois, já grávida de Michel. Eu nunca conheci o meu neto.

- Ele é incrível. Maravilhoso, doce, carinhoso... É realmente uma criança abençoada.

- Sinto o amor nas suas palavras. Isso me deixa muito em paz. Elena engravidou para não sair da vida de Michel de alguma forma.

- Sim, eu sei. Isso é terrível.

- Michel é um bom pai, não é?

- Ele é um grande pai. Tudo o que faz é pensando no bem de Miguel.

- Miguel... – Ela repetiu, pensativa. – Posso ver uma foto dele?

- Claro. - Tirei meu celular da bolsa, procurei por uma foto de Miguel na galeria e mostrei para ela. – Eu tinha acabado de dar banho nele.

Na foto Miguel estava deitado no centro da cama com uma toalhinha amarela enrolada em seu corpo. Ele olhava com um meio sorriso para a câmera.

- Meu Deus, como ele é lindo.

- Sim. Ele é.

Sara colocou a mão no rosto limpando as lágrimas. Guardei meu celular na bolsa novamente.

- Eu como mãe, me parte o coração de verdade ver o que a minha filha se tornou, mas é algo que não se muda, entende? Não posso mudar a minha filha. A vida mudou a Elena e isso não se corrige mais. A única coisa que eu posso fazer é proteger as pessoas dela. É me proteger dela e fazer justiça com os que sofreram com ela. - Sara abriu sua bolsa e tirou uma caneta e um papel.

Era o endereço da casa dela.

- Sara, você tem certeza?

- A justiça tem que ser feita, Maria Luíza. Pelo seu bem, pelo meu bem e pelo bem de todas as pessoas que a Elena já feriu. É a minha filha, eu a amo, mas eu não posso viver com isso. - Ela me passou o papel. – Vai. Faça logo o que tem de fazer. Eu disse que voltava logo. Ela está num quarto no final do corredor.

- Sara...

A minha mão tremia absurdamente. Constatei, horrorizada, que Sara não morava tão longe de mim.

- Não posso mudar as coisas que ela te fez no passado, Maria Luíza, mas o meu, o seu, o futuro do Miguel e do Michel eu posso mudar.

- Obrigada, Sara! Muito obrigada.


 

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 23/01/2017
Reeditado em 15/02/2022
Código do texto: T5890830
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