O Durante

A morte de Bernard trouxe a todos nós uma sensação de impotência e também de uma familiar dor. Impotência, porque nada pudemos fazer para impedir o suicídio. E a dor, bom, a dor de perder alguém já tem se tornado familiar para mim desde que me conheço por gente. Primeiro, minha mãe, depois minha tia, Tainara, Thomas e agora Bernard. E de todos, o único que eu nunca esperei qualquer coisa que envolvesse tirar a própria vida era Bernard. Ele sempre gostou de estar vivo, sempre amou se sentir vivo. Era um dos homens mais vivos que já conheci. A sua morte, a qual ainda não sabemos a causa, trouxe a todos nós uma incrível consciência de que não conhecemos ninguém por completo. Nem mesmo os nossos melhores amigos.

Michel e Samanta foram parar no hospital. Ambos tiveram uma crise nervosa e estão internados. Pela primeira vez o meu desejo de ver duas pessoas que amo bem foi maior do que a minha própria dor pela perda. Liguei para Alice, mãe de Michel, e pedi que viesse o quanto antes para a capital. Eu poderia consolar Michel, mas o colo da mãe dele o faria se sentir melhor. Samanta, que fora a primeira a ver o corpo de Bernard no apartamento precisaria de todo o apoio possível. E eu ficaria ao lado dela para o que fosse necessário.

No final da noite, enquanto observava Michel dormir recebi a ligação da mãe de Bernard. O que eu me lembrava dela era o básico: fria e tinha toda uma pinta de vilã da Disney. Bernard sempre dizia que a mãe era uma pessoa que ele queria distância, e foi assim durante o tempo em que estudamos juntos. A voz dela, devido à perda, era chorosa. Não condizia com a mulher que tinha uma relação delicada com o filho. Me pediu que passasse o endereço do hospital pois queria ver Michel. Desligamos com um breve “até logo”. O restante da minha noite foi completamente insone me dividindo entre Michel e Samanta. Nas raras vezes em que me sentei para descansar, a ficha começava a cair aos poucos e a vontade de me entregar a mais uma crise emocional voltava. Tínhamos perdido Bernard. Não era uma brincadeira. Ele não tinha colocado um dublê seu no apartamento. Não voltaria depois de alguns dias dizendo que estava mais vivo do que nunca. Ele tinha tirado sua própria vida e não sabíamos o motivo.

Esse tempo todo estive tão concentrada em meus problemas com Michel que não parei para perguntar o que realmente acontecia com Bernard. Mesmo que eu desconfiasse, mesmo que Michel estranhasse, nós nunca o enquadramos e o fizemos dizer o que tinha. Nas vezes em que o questionamos acabávamos sempre acreditando que não era nada. Porque não era de Bernard estar mal. Não era de Bernard querer que nos preocupássemos.


Mas também não era de Bernard tirar a própria vida.

- Por que você fez isso, Bernard? – Comecei a me perguntar, destruída. Era inimaginável pensar num futuro onde Bernard não estivesse, onde não faria parte das minhas vitórias e derrotas com Michel. Nós nunca esperamos perder alguém, e muito menos alguém que sempre gostou de estar vivo.

 

Olhei para Michel, completamente apagado na cama. Ele nunca aceitará ter perdido o amigo, muito menos sem motivo. Bernard e Michel eram quase uma coisa só. Desde que os conheci nunca fui capaz de imaginar um sem o outro. Não era só uma amizade. Era uma parceria. Uma união. Era a melhor amizade. Lembrei então de um episódio na escola em que quase fui o motivo do fim de amizade Bernard e Michel.

“Bernard me parou no corredor próximo a nossa sala e foi instantâneo o meu receio. Toda vez que estávamos no mesmo local ele me aprontava algo. Eu o olhei com cenho franzido.

- O que? – Perguntei, dando um passo para trás e vendo consequentemente ele dar mais um passo em minha direção. – O que foi que eu fiz agora?

- Nada, espantalho.

- Então...?

Encostada na parede, vi Bernard se aproximar demais, mas demais mesmo. Ele era bem mais alto, de modo que precisei levantar a cabeça para olhá-lo. Sua mão parou em minha cintura, onde apertou firme e a outra foi para dentro dos meus cabelos. Aquilo tudo me assustava, mas a contraponto, a minha atração imbecil pelo amigo da pessoa que eu mais detesto me deixava ali incapaz de reação. “Meu Deus, como ele é cheiroso.” – Pensei. “Olha essa boca, como é que pode alguém ter uma boca tão bem desenhada?”


- Eu não queria ter que fazer isso, mas infelizmente não aguento mais o Michel contrariando o que sente.

- Mas do que... – Bernard selou nossos lábios, carinhoso, mas sufocador. Minha mão pousou em seu peito, para afasta-lo e depois escorregou para a cintura dele. A língua dele adentrou minha boca e encontrou a minha. Eu não consegui resistir por muito tempo, e Bernard também não me permitiu. Conforme o beijo esquentava, as mãos dele ameaçavam entrar em minha blusa. Antes que eu pudesse colocar minhas mãos em seu pescoço, ele foi empurrado por um enfurecido rapaz de olhos verdes.

- VOCÊ SÓ PODE ESTAR BRINCANDO COMIGO, BERNARD!

Os dois começaram a brigar no chão do corredor como dois animais selvagens. Toda vez que tentava segurar Michel era empurrada com agressividade. Só quando vi que Bernard conseguiu se erguer que me coloquei entre eles. O lábio de Michel sangrava e o olho de Bernard estava roxo, além de outros diversos ferimentos.

- QUAL É O TEU PROBLEMA, SEU IMBECIL? – Perguntei, fitando Michel. O olhar frio e enraivecido dele me fez sentir muito pequena. – NÃO ME OLHE ASSIM!

- Bom, parece que o meu objetivo foi concluído com sucesso. – Bernard disse, com um enorme sarcasmo, mas a expressão era de dor. Michel nem o olhou. – Foi para o seu bem, meu amigo. Boa sorte, loira! Vai precisar.

Confusa, vi Bernard tomar um caminho rumo ao banheiro masculino. Como assim? O que foi isso? Ele me beijou e vai embora?

Michel ainda emanava uma fúria que era clara em suas íris verdes. Seria lindo de ver se eu não estivesse com medo dele.

- O que foi isso? – Perguntei, atônita apontando na direção em que Bernard saiu.

- Você gosta dele?

- O que? Claro que não! - Merda! Eu não tenho que me explicar pra ele! Que droga de mania! - Mas e se eu gostasse? O que tem a ver contigo? - Michel me puxou pelo braço, me empurrando contra a parede. Faz duas semanas que estávamos brigados por causa da Elena. É claro que em nenhum desses dias Michel me deu sossego ou parou de agir como se eu fosse uma posse dele. – Você não estava com a Elena?


- ELE É O MEU MELHOR AMIGO, DROGA!

- EU NÃO ESTOU COM ELE!

- VOCÊ RETRIBUIU O BEIJO!


- RETRIBUÍ E RETRIBUIRIA DE NOVO CASO FOSSE PRECISO! – Ele cerrou os olhos, exasperado. Vi sua mão vir contra meu rosto, me dando um tapa tão forte que senti a bochecha esquentar. – EU ODEIO VOCÊ! – Gritei, antes de sair dali, aos prantos. Não que eu tenha ido muito longe, pois Michel me agarrou de novo.

- Olha o que você me causa, sua idiota! – Ele tentou consertar seu tapa, mas eu não deixei. – Desculpa! Para com isso, pelo o amor de Deus! Você me tira do sério.

- NÃO!

- Malu... – Michel me levou a parede de novo. Suas mãos seguraram o meu rosto, e toda vez que eu tentava escapar ele tentava me beijar. – Eu fico completamente louco só de imaginar você não sendo mais minha.


As palavras me fizeram vacilar. Olhar para seus olhos e saber que aquilo era verdade me fez chorar, mas a razão me fez empurra-lo, com raiva.

- ME DEIXA EM PAZ, TAINO!


Como era costumeiro, Michel não me deu paz até que eu aceitasse voltara para ele. E algum tempo depois descobri que Bernard me beijou para enciumar o amigo e fazê-lo vir até mim, deixando assim seu orgulho de lado. Ele conhecia Michel o suficiente para saber que seu plano daria certo. E deu.”

Tudo isso parecia ter sido vivido ontem, mas já se foram quase 9 anos desde que conheci os dois. Eu chorava e ria no quarto, lembrando de tudo e me perguntando se era possível mesmo o tempo passar tão rápido.

Às 3 horas da manhã o médico entrou no quarto para me avisar que Samanta acordou e sua situação era estável.

- Oi... – Entrei no quarto e encontrei Sam sentada na cama. O rosto era pálido, os olhos estavam opacos, de nada lembrava a menina doce e de rosto iluminado que conheci. – Dona Malu... Eu... Ele...

Samanta não conseguiu completar sua frase, pois foi envolvida por uma nova crise de lágrimas. Ela tentou falar novamente, mas eram um emaranhado de palavras desconexas. Me sentei na ponta da cama e a abracei. Um instinto maternal nasceu em mim naquele momento.

- Eu sei...

- Por que ele fez isso? Por que ele se matou, dona Malu?

- Eu não sei Sam... Ninguém sabe. Eu estou tão confusa e perdida quanto você e o Michel. – Olhei para ela, que não conseguia parar de chorar. – Precisamos ser fortes. Precisamos passar por isso.

- Eu não vou esquecer jamais aquela cena...

- Sam. – Ela me fitou, chorosa. – Você tem que ser forte. Eu sei que isso está doendo. – Soltei o ar que eu prendia, e engoli seco, para evitar o nó que ameaçava se formar na minha garganta. – E muito. Mas você não pode desabar, ok? Eu não vou deixar. Eu e Michel vamos te ajudar.

Abracei Samanta, que chorou até perder o ar, mas depois conseguiu se acalmar. Ela foi medicada novamente e dormiu minutos depois. Quando voltei para o quarto de Michel o encontrei olhando para o teto com a expressão perdida e desolada. Fechei a porta do seu quarto e olhei para ele, mas ele não me olhou de volta. A minha força para mantê-lo bem teria que ser tão ou maior como a força que precisarei ter com Samanta. Eu não teria tempo para sofrer.

Sentei na beira da cama, ainda observando suas reações. A primeira lágrima deslizou por seu rosto. Delicadamente, passei o dedo por sua bochecha.

- Eu lembro quando o vi pela primeira vez... Olhei pra ele e sabia que seria meu melhor amigo. Justamente porque éramos parecidos... E não deu outra. O único melhor amigo que tive. O único que viu todas as fases da minha vida. O único que me viu na melhor e na pior. Eu achava que o conhecia dos pés à cabeça, mas... – Ele fungou alto. A voz embargou. Envolvi Michel em meus braços. – Malu, porque ele faria isso? Não tem sentido!

- Eu queria tanto poder te responder isso, amor. Eu juro por Deus que não sei, mas nós iremos descobrir, ok? – As íris verdes me olharam. Era o brilho mais triste que eu já tinha visto em Michel. – Eu preciso de você ao meu lado. Nós iremos passar por isso. Sempre juntos, lembra?

- Mas Malu, ele era meu melhor amigo...

- Eu sei, amor. Eu sei...- Deixei um beijo em sua testa e o apertei em meus braços. Michel continuou contando histórias dele e de Bernard antes de me conhecerem. Por algum tempo isso o fez sorrir, mas toda vez que usava o verbo no passado para falar sobre nosso amigo voltava a chorar. Parecia um menino de 10 anos. É claro que tive vontade de chorar, mas se os dois chorassem nem um conseguiria ser forte para o outro. E dessa vez era Michel que precisava de mim.

Michel e Samanta ficaram por uma semana no hospital. A polícia conversou com eles, mas principalmente com Sam, que viu o corpo. Ambos não conseguiram se recuperar totalmente do choque traumático pela perda de Bernard. O médico recomendou que ela passasse num psicólogo. Para Michel, a recomendação foi mais simples. Ele precisaria de uns dias para conseguir lidar com a perda e pediu total atenção com o dia-a-dia dele. Eu contei com a ajuda de Alice para cuidar de Michel e também do Miguel.
Acompanhei Samanta no IML, para fazer o reconhecimento do corpo. Durante esse tempo eu fui para o banheiro e chorei por alguns minutos. Teve uma hora que todas as minhas emoções se afloraram devido as perdas e o choro virou um mar de lágrimas e soluços. Uma senhora muito educada me trouxe um copo de água e conversou comigo por alguns minutos. Ela tinha vindo reconhecer o corpo do filho. O 2º filho que perdera.

Quando reencontrei Samanta, ela não chorava, mas a sua expressão era de cortar o coração de qualquer um. Ela foi para o meu apartamento, pois sentia-se muito cansada e precisava dormir. Naquele mesmo dia recebemos a visita da mãe de Bernard no apartamento de Michel. Ela ficou por 2 horas conversando com Michel no quarto, quando saiu, a mulher colocou seus óculos escuro, combinando com seu vestido preto. Era a dor de uma mãe, e mesmo que não tenha sido perfeita para o filho, sofria muito. E quem é que pode julgar uma mãe?

- Maria Luíza, antes de ir, posso dar uma palavrinha contigo?

- É claro!

Seguimos até a porta, eu a encostei um pouco, para podermos conversar à sós.

- É... Eu estou cuidando do funeral do... – Ela respirou fundo. – Do meu filho. Só estou esperando a liberação do corpo. – Balancei a cabeça, assentindo. – Entrarei em contato com vocês para avisar.

- Claro, e se você precisar de qualquer coisa estamos à disposição.

- Ele era meu filho, mas vocês dois que são a verdadeira família dele. Cuide de Michel e da moça de cabelos cacheados que me ligou... Por favor.

- Samanta. E sim, eu cuidarei.

- Isso. Quando ela me ligou eu fui direto para o apartamento e encontrei isso aqui. Guardei comigo antes que a polícia chegasse. – Ela me entregou três cartas. – São para vocês três.

- Obrigada. E meus sentimentos pela sua perda, Bia. – Ela agradeceu e saiu completamente silenciosa. Não dava para saber o que pensava ou sentia. O Bernard muito lembrava a mãe que ele tanto evitou.

- O que é isso? – Alice perguntou, quando entrei em casa.

- Acho que são cartas do Bernard. Você acha que devo mostrar a do Michel agora?

Ela ficou em silêncio por alguns minutos e depois balançou a cabeça em um não. Alice segurou minhas mãos e olhou para as cartas.

- Ele ainda não está preparado. Acredito que nenhum de vocês. Deixe para depois do funeral. É melhor.

- Você está certa.

Guardei as cartas em minha bolsa e voltei para o quarto de Michel. A cena que vi por alguns instantes trouxe alguma ternura a toda dor que passávamos. Miguel dormia relaxadamente na barriga do pai, a boquinha vermelha estava entreaberta. As semelhanças entre ambos ficavam mais fortes. A julgar pela expressão tranquila dos dois, o amor de filho, ao menos por algumas horas desanuviou a dor no coração do pai.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 13/11/2016
Reeditado em 31/07/2022
Código do texto: T5822448
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