Consertar você



Foram 23 dias.

Por 23 dias Maria Luíza foi induzida ao coma a fim de salvar sua vida. Ela havia perdido muito sangue e sofrido traumatismo em duas áreas do corpo por conta das agressões. 23 dias que eu não dormi direito, não me alimentei bem e não saí do hospital por momento algum. Os médicos, otimistas, falavam que Maria Luíza lutava por sua vida e que eu não devia me preocupar, mas as palavras não traziam conforto algum. Eu precisava ver aquele par de olhos azuis me olhando de novo. Eu precisava tê-la em meus braços.

Durante esses dias recebi algumas visitas. Primeiro da polícia, que tomou meu depoimento sobre o dia do sequestro de Malu e concordaram em esperar que ela saísse do coma para poderem conversar. Um deles, bastante simpático por sinal, me desejou força para passar por esse momento.

Samanta e Bernard vieram também. O que por algumas horas me fez rir e esquecer do pesar de tudo o que vivíamos.

- Ela vai ficar bem, cara. – Bernard disse, depois que Samanta saiu para ir ao banheiro. – A loira é forte. - Balancei a cabeça, assentindo. – A polícia falou com você?

- Sim, mas precisam da Maria Luíza. Ela é peça essencial.

- Ela vai precisar de você. Muito.

- Eu tenho medo dela não me perdoar. – Ele me olhou, compreensivo. – Tudo o que ela passou foi por minha causa. A morte da tia, a vida na Alemanha e agora a morte de Thomas.

- Vocês precisam um do outro. Ela vai saber te perdoar sim. E... – Bernard me deu dois tapinhas nas costas. – Quanto ao Thomas... Foi uma tragédia, mas isso é culpa da Elena.

- Acho que nem se eu viver mil anos vou me esquecer do que vi naquele dia.

Bernard colocou a mão por cima da minha. Ele não era muito bom palavras, mas eu sabia que aquela era sua forma de apoiar. Samanta voltou e por mais algum tempo ficamos ali conversando, tentando não lembrar a todo custo que no quarto ao lado Maria Luíza lutava por sua vida.

Dias depois minha mãe, que ainda cuidava de Miguel, veio até o hospital. Ouvir a risada do meu filho foi uma das coisas mais gostosas que já me acontecera nos últimos dias.

- Você precisa dormir, Michel! – Alice sentou ao meu lado no sofá da sala de recepção. – Suas olheiras estão horríveis.

- Eu estou bem, Alice.

- Não está não.

- Eu quero estar aqui quando ela acordar. – Miguel ficou em pé no meu colo e apertou o meu nariz. – O pai ama você.

- Eu mostrei uma foto sua quando pequeno, ele ficou olhando e depois sorriu. Até parece que sabia que era você.

- Talvez ele saiba.

- E ela? – Alice perguntou, receosa. Eu respirei fundo, completamente exausto. – Ah, filho... – Um carinhoso abraço envolveu a mim e meu filho. – Chora. Você precisa chorar.

Eu não era de chorar. Alice sabia disso. Ela com certeza pode contar nos dedos as vezes que me viu chorar por qualquer coisa. A situação era desgastante, exaustiva e mais do que nunca eu só queria o colo da minha mãe.

- Você me disse que ela levou uma facada e resistiu todo aquele tempo, não iremos perde-la.

- Eu me sinto tão mal, mãe. Sinto como se todo o mal que ela está sofrendo fosse por minha causa. É muito difícil.

- Não, filho. Não é sua culpa. E ela saberá disso quando acordar. Se alguém é responsável por essa tragédia é aquela doente. – Alice colocou a mão na boca. – Deus, me perdoa. Sei que se não fosse aquela maluca nós não teríamos o Miguel. Eu odeio ela!

- Mãe... – Via em seus olhos a emoção de eu enfim chama-la de mãe. – Eu não posso perde-la.

- Você não vai, filho. Vocês terão uma vida muito melhor depois disso tudo.

Alice ficou o dia inteiro comigo, mas precisou ir embora pois Miguel dormira e as enfermeiras não permitiriam mais uma pessoa dormindo clandestinamente no hospital. Prometi que entraria em contato assim que Maria Luíza acordasse.

Sozinho fui engolido pelas lembranças, porém, mas dessa vez eram lembranças da adolescência. Eu passei a contar para Maria Luíza algumas histórias nossas, como se de alguma forma isso a trouxesse de volta.

- Lembra quando eu te obriguei a fazer minha revisão de português? Era para uma apresentação da escola, você me entregou e quando eu fui ler na frente de toda aquela gente era um imenso texto me xingando e dizendo que eu te fazia minha prisioneira. Além, claro de me chamar de maluco psicopata. Fui motivo de risada por uma semana. – Engoli seco sentindo uma inevitável emoção com as lembranças. – Eu te odiei tanto naquele dia. Jurei que nunca mais querer ver você na vida. - Segurei a mão dela, apertando seus dedos e não houve resposta alguma. Ela continuava presa no coma, presa por aparelhos e fios. Sua expressão tinha alguma serenidade, apesar da palidez da pele pelos vários dias no hospital. – Eu preciso de você, Malu. Eu sempre precisei. Esses 8 anos sem você eu só fui levando, mas faltava algo. E era você. Sei que você está sofrendo, sei que quando acordar talvez nem queira me ver, mas por favor, não vai embora...

Toda a minha declaração fora dita para alguém que não me responderia tão cedo. Sentei-me na poltrona e peguei uma coberta que uma das enfermeiras me dera e segundos depois entrei num sono pesado em decorrência dos piores dias da minha vida.

No dia seguinte, ainda vivendo de forma clandestina no hospital, fui até o banheiro (amizade com a enfermeira certa me deu alguns benefícios) pela manhã, tomei um banho rápido, escovei meus dentes, fiz todas as minhas necessidades e no caminho ao quarto encontrei o médico de Maria Luíza. O sorriso dele fez uma expectativa nascer em mim.

- Doutor Sérgio. – Era um homem branco e magro, de 45 anos e olhos gentis por trás de seus óculos quadrados.

- Olá, Michel! Boas notícias.

- Ela acordou?

- Sim!

- Eu posso ir vê-la?

- Pode, mas me escute. – Ele sorriu, por conta da minha ansiedade.- Ela precisa de repouso, não pode sofrer fortes emoções, certo? – Assenti. – A cirurgia foi um sucesso, porém, psicologicamente ela ainda está abalada. Tenha cautela.

- Tudo bem, doutor. Muito obrigado!

Eu corri até o quarto sem me importar com os olhares de reprovação dos funcionários. Sentada, Maria Luíza tinha a pressão medida por uma enfermeira, que saiu em seguida. Me aproximei, lentamente. Ela só me olhava, não dava para saber qual era o seu pensamento.

- Malu. – Ela deu um meio sorriso. O que foi mais do que o suficiente para eu abraça-la desesperadamente, e movido por todas as minhas emoções, voltar a chorar. – Me desculpa por tudo, eu não quero que você me odeie.

- Shhh....

As minhas lágrimas se misturaram as dela. Eu não sabia explicar o quanto era apaixonado por essa mulher. Talvez eu jamais saiba como.

- Eu não queria que as coisas tivessem chegado a isso, você sabe, não é? – Ela assentiu ao colocar a mão no meu rosto. – Eu sinto tanto.

- Eu sei que sim. Você não tem culpa. – Disse, limpando minhas lágrimas. – Eu te amo tanto. Eu sempre quis te dizer isso. Você é o grande amor da minha vida, Michel. - Ela selou nossos lábios, delicadamente. Ainda sentia dores e o medicamento a deixava instável.

- Malu, eu queria ter chegado a tempo de salvar o Thomas.

- Eu sei, amor. Eu sei.

Eu a abracei, tomando o cuidado para não a machucar. Honestamente, não sei se Maria Luíza se sentia mesmo bem ou somente fingia para que eu não me preocupasse mais.

- Michel, eu preciso que você me conte algumas coisas.

- Malu, o doutor disse que... – Seu dedo pousou sob meus lábios.

- Confia em mim, amor. Eu estou bem.

- O que você quer saber?

- Como foi que Thomas parou lá?

Por cerca de uma hora contei para Maria Luíza os últimos momentos de Thomas. Não foi fácil vê-la chorar desconsolada pela morte de seu ex-namorado, ainda mais tendo em vista que a culpada por isso é a mãe de meu filho. “Ele não entendia o que acontecia, mas sabia que não podia ir embora porque você estava com problemas.” Quando terminei, avisei que os policiais queriam conversar com ela sobre o assassinato. Por incrível que pareça isso não a assustou.

- Eles disseram quando voltam?

- Provavelmente amanhã, pois a direção do hospital precisa avisar que você acordou.

- Certo. – Eu segurei sua mão e ela entrelaçou os nossos dedos. – Obrigada.

- Pelo o que?

- Por não ter desistido de mim.

- Eu jamais desistiria de nós, Malu. – Ela se ajeitou em meus braços. – Tudo isso vai passar. E logo. Eu prometo.

Na verdade, eu não sabia quanto tempo tudo aquilo duraria, mas qualquer coisa era melhor do que ver Maria Luíza sofrer.

Os policiais vieram no outro dia para interrogar Maria Luíza. O processo durou 2 horas e quando terminou, ela voltou a ter uma crise de choro no quarto. Precisei consola-la repetindo diversas vezes que não era a sua culpa o Thomas ter sido morto. Depois recebemos a visita de Bernard e Samanta. Ela então pode esquecer por algumas horas os dias difíceis que tivemos. Depois Neusinha passou para nos ver. A velha secretária nos tranquilizou quanto ao trabalho e disse que sentia a nossa falta. Pela noite, minha mãe trouxe Miguel para a visita. Eu temi por sua reação com meu filho, mas o que houve então foi um abraço seguido de muito amor. Ás vezes atrás da tempestade vem um belo dia de sol.

Quando o último dia de Malu no hospital enfim chegara, ela precisou ir ao IML reconhecer o corpo de Thomas. Mais uma vez temi por seu emocional e novamente fui surpreendido. Todo aquele processo durou duas semanas, até abrirem a investigação e busca por Elena e Bill. A recuperação de Malu foi delicada, apesar dela não demonstrar, muitas vezes eu acordava com um choro abafado na madrugada. Eu não sabia fazer outra coisa além de confortá-la e me culpar mentalmente por tudo aquilo, o que me fazia chorar também. E o mais estranho é que de alguma forma tudo isso fortaleceu o nosso relacionamento.

Alguns dias passaram até que Malu não precisasse de mim para tarefas simples, como tomar banho ou comer. Foi a primeira vez em um mês e meio que eu dormi uma noite inteira, pois ela estava realmente recuperada.

Naquele dia fui acordado com um carinho nos cabelos.

- Bom dia, dorminhoco... – A voz dela era carinhosa. Eu abri os olhos, sonolento.

- Ei, você está bem? – Me sentei, na mesma hora. – Está com alguma dor?

- Relaxa, eu estou bem... – Ela colocou o dedo indicador sob meus lábios. – Não sinto dor alguma. – Depois um sorriso nasceu em seu rosto.

- Fico mais tranquilo...

- Michel, eu preciso ir até a Alemanha. Eu tenho que contar para a família do.. – Ela respirou fundo, buscando forças. – A família do Thomas.

- Entendo.

- Eu quero que você vá comigo. – Eu balancei a cabeça, assentindo. – Assinei um documento que autoriza o envio do corpo para a Alemanha, sei que ele gostaria de ser enterrado lá.

- É claro que eu vou. Alice não se importará de passar mais uns dias com Miguel.

- Eu não tive coragem de ligar para a família dele.

- Você precisa fazer isso, Malu. A polícia brasileira entra em contato, mas é necessário que você fale.

Ela me abraçou, como uma criança assustada, mas não chorou. Eu apertei meus braços ao redor de seu corpo e beijei seus cabelos. Vi quando Maria Luíza segurou seu celular na mão e o olhou por algum tempo, totalmente insegura. Era doloroso demais vê-la passar por tudo aquilo.

- Malu, que tal comprarmos as passagens antes? – Perguntei, tentando amenizar o clima que se instalara no quarto. – Você liga em seguida.

- Tudo bem. – Ela respondeu com a voz baixa. – Vamos comprar as passagens.

Tirei o celular de sua mão, deixando-o em cima do criado-mudo. Ela me olhou com algum agradecimento no olhar por eu ter sugerido algo que lhe cobraria menos emocional. Beijei sua testa e afaguei seus cabelos.

- Vamos passar por isso, ok? E juntos. Sempre juntos.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 25/10/2016
Reeditado em 12/06/2022
Código do texto: T5803099
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