O seu fantasma – Parte 2


Abrir os olhos parecia uma das piores coisas que poderiam me acontecer naquele dia. Eu sentia minha cabeça pesar e todo o meu corpo doer como se tivesse sido pisoteada por alguém. E de certa forma era isso que me acontecia no quarto onde Elena me tornara sua prisioneira.

- Ainda bem que você acordou, pensei que tivesse morrido! – Ouvir a sua voz fria e um pouco melódica me fez ter certeza de aquilo não era um pesadelo. – Bill! – Gritou. Eu me sentei, com muito esforço. – Ela acordou, amarre-a na cadeira.

- Elena... – Eu quase não tinha voz. – Por favor.

A julgar pelo quarto em que estávamos, parecia que Elena me trouxera a um hotel abandonado. O lugar estava destruído e fedia a lixo.

- Calma, querida. Nem começamos a brincar. – Tentei me recordar da noite anterior, mas tudo parecia um borrão difícil de ser visualizado. – Vamos, homem!

Bill, o homem imenso me puxou pelo braço e me jogou em uma cadeira. Minha cabeça tombou, e em seguida uma onda de fraqueza me invadiu. Comecei a me perguntar há quanto tempo estávamos ali. Dias? Horas? Semanas? Meus braços foram amarrados com força, a corda arranhava e rasgava minha pele. Eu vi Elena se aproximar por trás da cortina loira do meu cabelo. Seu sorriso não poderia ser de maior satisfação.

- Você não parece tão bonita agora. Será que Michel ainda vai te olhar com os mesmos olhos de sempre? – Ela passou o dedo por meu lábio, e eu vi o meu sangue em seu dedo indicador.

- Deixa ele fora disso...

Elena levantou minha cabeça para que eu a olhasse.

- Não... Ele também faz parte disso. Afinal, amamos o mesmo homem, não é?

- Elena... Por favor.

- Nossa, para de pedir por favor! Como você é chata, Maria Luíza!

Vi Elena se afastar. Eu queria identificar melhor aquele lugar, mas meu corpo não me obedecia. Estava com fome, sede, sono e muito medo. Ela não me deixaria sair até realizar seu desejo de me destruir por completo.

- Malu... Antes do Michel chegar, precisamos conversar... Botar nosso papo em dia. Tanto tempo, não é?

- Elena, por favor... Água.

- Claro.

Ela jogou, o que eu imaginei ser, uma garrafa de água em cima de mim. Eu ainda consegui sentir alguns pingos na boca, mas no geral, fiquei encharcada. Depois sua risada tomou conta do lugar. A água no corpo acabou me despertando.

- Foi divertido, não é? Viver com o meu marido, se tornar mãe do meu filho...

Elena sentou-se numa poltrona azul, de frente para mim.

- Eu não me tornei mãe do seu filho!

- Você se tornou sim, sua vagabunda! É claro que você não poderia ficar contente na Alemanha, vivendo sua vidinha de conto de fadas, não é? Você tinha que tentar peitar o Immanuel! – Conforme falava, as expressões de Elena iam da calma à fúria. Seu punho fechou. – Eu fiz de tudo para você ter uma vida boa lá! E o que você faz? Enfrenta o filho do dono da empresa para se tornar presidente!

- Co-como você sabe de tudo isso?

Ela revirou os olhos para mim, com muito desprezo.

- Porque EU, fiz você ir para a Alemanha! EU, descobri esse segredo da sua tia! – Explodi, tentando avançar sob ela. – E claro, eu tive que tirá-la da sua vida, para então tirar você da vida do Michel. - Identifiquei o toque do meu celular e então vi que Elena o segurava. – Olha só se não é o nosso homem.

- DEIXA ELE EM PAZ!

- Bill, cala a boca dessa idiota. – Uma mão gigante tapou a minha boca. – Oi amor... – Tomei a errada decisão de morder a mão de Bill, e com isso levei um tapa no rosto que me fez cair.

- Essa vaca me mordeu! – Exclamou o gigante, ao receber um olhar reprovador de Elena.

- Shiu! Nossa, como você está nervoso! – Ela riu, em provocação. – Calma, não vou matá-la! - Minha mente começava a trabalhar muito rápido. Elena confessaria seus crimes agora e eu precisava de algum jeito de gravar aquilo tudo. “Jogada nesse chão e nesse estado deplorável não vou conseguir nada!”. – Vou te passar o endereço por telefone, não tente fazer nenhuma gracinha, Michel... Ou então você vai se arrepender.

Ela digitou muito rápido e depois deixou o celular na poltrona. Bill, me colocou sentada novamente. Elena tinha um sorriso imoral nos lábios.

- Então, como eu dizia... Você estragou todos os planos que eu tinha. Eu te dei uma vida maravilhosa e que foi jogada no lixo porque você é imbecil demais para se pôr no seu devido lugar. Além de um amante como o Immanuel, você tinha o Thomas!

E eu que já achava ter vivido todo o tipo de loucura possível, vi alguém contar a minha vida como se fosse a verdadeira dona dela. Elena revelou e contou a minha vida sob sua visão. Ela sabia do meu relacionamento com Immanuel, e também soube quando iniciei meu namoro com Thomas.

- Era bom, não era? Se sentir atraente para dois homens. – Era a pergunta de uma mulher que já não tinha mais pleno controle de sua sanidade. – Era bom transar com um homem poderoso e depois voltar para os braços do bom namorado, não era?

Eu mal vi quando ela ficou atrás de mim. Suas mãos entraram em meu cabelo, puxando com tanta força que eu sentia meu couro cabeludo arder. As lágrimas desceram naturalmente.

- RESPONDE!

- Era... – A minha resposta saiu baixa e tremida. Eu só queria que aquilo acabasse. – Era muito bom.

- Você nunca foi nenhuma santinha, Maria Luíza! Você só enganou ao Michel e ao Bernard, porque a mim não! - Ela tirou as mãos do meu cabelo e voltou a se sentar. – Vamos lá, me conte as suas histórias! Como foi que você conseguiu tornar o seu amante um inimigo? E um agressivo inimigo... Não é?

Eu não queria falar. Lembrar de tudo aquilo me machucava muito, mas era exatamente aquilo que ela queria. Foi então que percebi: Eu não ia morrer, mas sofreria mais uma ferida tão profunda quanto as outras que ela me causara.

- Ele se sentiu desafiado e intimidado quando eu disse que disputaria a posse da empresa de sua família, então suas atitudes comigo mudaram. Uma vez fomos ao motel e...

O excitamento no olhar dela era claro.

- E...?

- E foi a primeira vez que eu o vi perder o controle comigo.

- Como?

Ela se ajeitou na poltrona, ouvindo atentamente. O meu sofrimento a deixava em êxtase. E aquilo era de uma devassidão sem fim.

- Ele me enforcou durante o sexo, o que me perder o ar por alguns minutos. – Fechei os olhos, desejando não me ferir mais com aquilo, mas fora inevitável. – Depois ele me estuprou.

- Nossa... – Elena sorriu, maravilhada.

- Te diverte, não é?

- Me excita o seu sofrimento. Desde sempre me excitou. – Ela colocou a mão no meu queixo e depois empurrou meu rosto. – Sei que você pede internamente que eu te mate e acabe com todo esse sofrimento, mas...

- ...Você não vai me matar.

- Não. Morrer para você seria um descanso de todos os seus sofrimentos... Eu tenho outros planos Maria Luíza.

Minha curiosidade não foi maior que meu medo, por isso me calei. Ela me obrigou a contar coisas que eu me envergonhava de lembrar, e histórias que me faziam chorar. No final daquilo tudo eu chorava alto, do tamanho da satisfação de meu maior desafeto.

- E foi você quem buscou por tudo isso. – Disse, categórica. – Você é tão imbecil que achou mesmo que seria a presidente de uma empresa de família? Faça-me o favor, Maria Luíza!

A porta foi aberta abruptamente. Para meu alívio e temor era o Michel. Ele tinha a camiseta rasgada e um corte na testa, sua respiração era exausta. Ao me ver, sua expressão suavizou, mas não durou muito.

- Olha só quem chegou, me...

- Michel, não! – Tentei impedir, ao ver sua intenção.

Michel empurrou Elena contra a parede e a enforcou.

- Me dê dois motivos para eu não acabar com você agora mesmo, Elena.

Ela parecia pequena e desestabilizada perto dele, mas ainda assim, mantinha um sorriso nos lábios.

- BILL!

Questão de segundos depois eu senti o frio do metal em meu pescoço. Michel olhou para mim e automaticamente soltou Elena. Bill afastou a faca.

- Ótimo! Finalmente você chegou. Sente-se, Michel, vamos pôr o papo em dia também! Como está o nosso filho?

Uma cadeira foi colocada ao lado da minha e Michel foi amarrado.

- O meu filho está ótimo, Elena.

- Fizemos ele muito bem, não é? – Cada pergunta dela fazia Michel tremer de tanta fúria.

- Vai pro inferno, sua doente!

- Eu, doente? Eu sou a pessoa mais sã dessa história toda. Só estou reunindo vocês para colocarmos a conversa em dia. Vamos lá, Maria Luíza! - Eu a olhei, confusa. – Conte para Michel do que estávamos conversando.

- Elena. – Ele murmurou, sabendo o que iria acontecia. – Não precisa disso, para de ser ridícula!

- Está com medo de ouvir algo que te faça não vê-la mais com os mesmo olhos?

O clima daquela conversa começava me fazer enjoar. Michel me olhou, preocupado. Eu sabia que não teria como fugir do que iria acontecer.

- VAMOS, MARIA LUÍZA!

Eu não conseguia abrir a boca, tinha medo de vomitar tamanho o meu mal-estar. Elena, como um raio, veio até mim e me puxou os cabelos. Senti seus lábios em meu ouvido.

- Não me obrigue a te bater de novo. – Ela girou minha cadeira, e fez o mesmo com Michel, deixando-nos cara a cara. – Vamos lá, quero ver você olhando para essas lindas esmeraldas e contando toda a sua verdade.

Quando olhei para Michel tive vontade de chorar. Por mais degradante que aquilo tudo fosse para ambos, sabia que ele queria a verdade.

- Eu traí o Thomas durante todo o nosso relacionamento. – Não tinha ideia de como consegui falar a primeira frase sem chorar ou vomitar. – Fui amante de Immanuel Babinsky, o herdeiro da companhia, e tudo começou porque eu não queria mais ser uma menininha que tinha um passado de sofrimento, que achava ter sido abandonada pelo ex-namorado. – Nesse momento Elena foi para o lado de Michel e tentou beijar a bochecha dele, mas ele se afastou, com nojo. Seu olhar era fixo em mim. – Eu não me preocupei com o Thomas, nem com seus sentimentos.

Elena deu um pigarro falso.

- Conte para Michel a verdade, Maria Luíza. TODA a verdade.

As lagrimas começavam a descer conforme eu continuava falando. Contei sobre as diversas vezes em que transei com Immanuel antes de me encontrar com Thomas, inclusive no dia de seu aniversário. Eu esperava um óbvio julgamento de tudo aquilo, mas o que recebi foi um olhar de empatia.

- (...) Então quando ele soube que eu pretendia concorrer também a presidência da Babinsky tudo mudou. Immanuel tornou-se agressivo, frio e extremamente cruel. Eu sofri não apenas abuso psicológico, como também sexual. – Respirei fundo, completamente trêmula. Michel baixou a cabeça, e balançou negativamente. – Mas não conseguia sair daquela prisão que era viver sob o comando de Immanuel até o dia que ele mesmo me tirou de seu caminho quando resolveu me mandar para o Brasil, para substituir o seu ex-chefe. Eu devia ter contado para o Thomas toda a verdade, para que ele pudesse seguir em frente, mas não conseguia. O amor do Thomas me fazia bem, gostava de vê-lo me amar de forma egoísta. Amar por mim e por ele. Então só vim para o Brasil e reencontrei você.

- Ela ainda parece tão perfeita para você? – A pergunta foi feita bem próxima do ouvido de Michel. Cada proximidade de Elena, eu via seu punho fechar.

- Você se acha algum tipo de juíza da verdade, Elena? – O contra-ataque dele a deixou desprevenida. – Já que estamos contando as nossas verdades, porque você nunca me disse que teve um caso com o meu pai?

Aquela informação não me surpreendeu. Não depois de tudo o que eu já tinha ouvido Elena falar. A pose dela enfim, diminuira com a pergunta.

- Eu me envolvi com o seu pai por SUA culpa! E acabei descobrindo que ele é tão ou mais fraco que você!

- Uau! Incrível como você tem justificativa para cada um de seus atos, não é? Matar a tia da Maria Luíza também deve ter uma justificativa, acredito eu!

- SIM, EU FIZ TUDO O QUE FIZ POR AMOR A VOCÊ!

Michel conseguiu fazer com que Elena perdesse sua confiança (quase) inabalável.

Nada como uma conversa com um velho amor para mexer com nossas emoções.

Ela virou a cadeira de Michel, ficando cara-a-cara com ele.

- VOCÊ SEMPRE ME TRATOU COMO UMA SEGUNDA OPÇÃO! EU ERA A PRIMEIRA E A ÚNICA! MAS ESSA VAGABUNDA TIROU TUDO DE MIM, ATÉ O JEITO QUE VOCÊ ME OLHAVA! EU TIVE QUE TIRÁ-LA DE VOCÊ PARA ENTÃO SER A ÚNICA COISA DA SUA VIDA!

Michel que eu não sabia mais se encenava ou não, começou a rir. Tive medo que a sua reação piorasse a nossa situação.

- Deixa eu te contar uma coisa. – Ele falou, deixando uma Elena a ponto de explodir. – Eu nunca senti por você a metade do que sinto pela Maria Luíza. Nem.a.metade. Nem quando fomos morar juntos! A única coisa boa que você me deu foi o meu filho, porque de resto, Elena, tenho vergonha de ter me envolvido com você.

Foi questão de fechar os olhos, menos de 15 segundos, não sei. Tem coisa que parece muito além de uma contagem de tempo. Quando os abri, uma faca entrava em minha barriga, e bem lentamente, com todo o desprezo que ela sentia por mim. Michel gritou, desesperado.

- Péssima hora para você decidir ser verdadeiro, não acha? – Ela girou a faca em mim duas vezes, e depois a tirou, jogando-a longe. – Calma, foi num lugar que não irá matá-la, mas talvez a faça agonizar por um longo tempo.

- Michel...

Eu sentia o sangue saindo de mim, deixando-me cada vez mais fraca. Tentei manter minha visão firme, apesar de toda a dor.

- Me perdoa amor, me perdoa. – A dor na voz dele era também a minha dor. – Maria Luíza, olha para mim, por favor!

- Eu fiz tudo o que fiz porque sempre fui a verdadeira merecedora do seu amor, não ela. Ela é um estorvo para a humanidade. E sempre vai ser!

Na visão débil de Elena, me fazer sofrer era extirpar todo o mal que ela achava que eu trazia para as pessoas ao meu redor. Até que então, ouvi uma frase que pelo restante da minha vida eu nunca me esqueceria.

- Fazer parte da vida da Maria Luíza é fatal para qualquer um.

- CALA A SUA BOCA! – Michel gritou, fazendo-a rir. – VOCÊ É DOENTE! MEU DEUS COMO NÃO FUI CAPAZ DE VER ISSO!

- Você me acha doente? Bom, você não sabe do que eu sou capaz, Michel. - Eu deitei a cabeça nas costas da cadeira, não conseguia mais resistir a minha própria dor. – Ei Bill, você já está com aquilo que te pedi?

- Sim! – Respondeu Bill, de algum lugar do quarto. – Na hora que você quiser...

- Ei! – Elena chutou minhas pernas. – Ah, qual é! Uma facada e você já está quase morrendo? Uma mulher que sofreu abuso sexual e psicológico de um amante deveria ser mais forte, não acha?

- Eu juro por Deus, Elena vou acabar com você! - Era mais uma ameaça de Michel.

- Ah, eu sei que vai. Bill, amarra algo na boca do Michel, por mais lindo que seja, preciso dele calado.

Ela me deu outro chute, me obrigando a sentar ereta, mas a dor da facada me impedia. Michel, ao meu lado, tinha um pano amarrado por Bill em sua boca.

- Você vai ligar para o Thomas. – Disse, simplesmente. – Invente uma desculpa para que ele venha até aqui.

- O que você quer com o Thomas?

Era uma daquelas perguntas que eu tinha medo da resposta.

- Bom... – Seu sorriso cruel, fez com que eu soubesse na mesma hora o que ela pretendia fazer. Gritei, tirando forças de mim que nem sabia existir. – Ah, você vai sim! Ou quer levar outra facada?

- ELENA, POR FAVOR, NÃO!

- Tudo bem! Eu faço a ligação.

Ela pegou o telefone e começou a procurar o número de telefone de Thomas. Naquele momento surtei, comecei a gritar o mais estridente que pude. Sabia que era mais uma péssima escolha, mas não poderia deixar Elena matar Thomas para me punir.

- Bill, tape a boca dessa vadia também. - Bill obedeceu. – Você vai carregar isso com você, Maria Luíza. Vai carregar a morte de Thomas. Assim como da sua mãe e da sua tia. As duas morreram por sua causa.

Eu me debati tanto que até cai com a cadeira. E mais uma vez a única forma de me calar foi com um soco vindo de Bill. O resultado de toda aquela barbárie me fez cuspir sangue e perder a consciência de forma gradativa.

Ainda consegui ouvir os gritos surdos de Michel e o riso de Elena seguido de uma surpreendente doçura em sua voz ao falar no telefone.

“Thomas, boa tarde! Aqui é Elena falando, tudo bem?”

A dor emocional não foi mais forte que a dor física e desmaiei novamente.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 02/09/2016
Reeditado em 20/08/2023
Código do texto: T5748491
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