O papo de dois homens e uma mulher



Não vi Michel após a nossa última discussão em meu quarto. Ele deixou avisado para Neusinha que trabalharia em casa. Eu ainda liguei para ele, mandei mensagens e até e-mails, mas não houve respostas ou retornos. Optei por deixa-lo se acalmar. Assim como Thomas, ele tinha os seus motivos para não querer me ver. Pela noite, Bernard me convidou para irmos a um bar após o meu expediente, aceitei o convite, mesmo achando muito estranho ele querer sair comigo numa segunda-feira.

Quando Bernard veio me buscar, já tinha recém-anoitecido. Não respondeu minhas perguntas até o momento que chegamos no bar, que seguia o estilo pub americano. Muitas bandeiras de times de futebol americano, e bandeiras dos EUA espalhadas pelo local.


Eu só me dei conta do que era aquele encontro quando identifiquei uma figura masculina sentado à mesa, bebendo. Olhava o copo com um líquido escuro a sua frente e suspirava.

- Ele não quer falar comigo. – Eu lembrei a Bernard, que continuava me puxando para andarmos até Michel.

- Ele está bêbado e amargurado. Se tem uma coisa que ele quer, é falar.

Fui gentilmente empurrada para sentar, ficando de frente para Michel. De fato, ele estava bêbado. E pelo inchaço em seus olhos, havia chorado. Quando me olhou, deu um irônico sorriso torto para Bernard.

- O que ela está fazendo aqui?

- Vocês precisam conversar. Você precisa dela. – Bernard respondeu, chamando o garçom, que rapidamente se aproximou. – Por favor, campeão! Uma garrafa de vodka. A conversa aqui vai ser longa. – Ele me olhou. – Michel acha que temos algo. Algo tão secreto e íntimo que você não tem nem com ele.

Olhei para Michel, sua cabeça estava abaixada.

- Eu não tenho um caso com o Bernard! Meu Deus, Michel! – Exclamei, com raiva. Suas íris verdes me encararam, agora avaliadoras. Eu sustentei seu olhar. – Você sabe disso. Você sabe o que eu sinto.

- Acho que não sei, Maria Luíza. – Respondeu, firmemente. – Eu sinceramente não sei mais o que pensar. Já pensei de tudo e nada me parece correto ou verdadeiro. Eu não sei mais de nada.

Sua resposta acabou me magoando. Por mais que estivesse em seu direito, saber que ele duvidava dos meus sentimentos me atingia de uma forma que só sendo Michel Taino para conseguir. Esperei o garçom nos servir e sair para poder responde-lo. Abri a boca duas vezes, pronta para isso, mas me faltavam palavras.

- Já falei para ele várias vezes que não é necessário duvidar do que você sente, mas Michel disse para eu ir para o inferno, pois é lá que moram as pessoas que tem segredo com a mulher do melhor amigo. – Apesar do gracejo, o máximo que nós três conseguimos esboçar foi um quase sorriso. Michel bebeu num gole só o resto do whisky em seu copo.

- Por que você me esconde as coisas, Maria Luíza? Eu imagino que seja algo que me envolva diretamente, já que eu não sei o que é, e o Bernard sim.

- Você não está preparado para saber, Michel. – Respondi, tomando todo o cuidado no tom usado, para não ser mal interpretada. Não que tenha adiantado, pois o soco que ele deu na mesa não foi nada compreensivo.

- E como é que você tem tanta certeza disso? – A pergunta saiu entredentes.

- Por que eu conheço você.

- Ah, é verdade! Sou eu que não conheço você.

- Michel... – Bernard tentou se impor, mas recebeu um olhar nada agradável do amigo. – Ok, continuarei calado.

- Eu sei que não posso te pedir paciência, e que nem devo fazer isso, mas ainda não é a hora de saber tudo o que aconteceu naquele dia da formatura.

Ele então me olhou, surpreso por eu mencionar a formatura. Eu não consegui olha-lo. Sabia que se encarasse os olhos verdes acabaria contando tudo de uma vez. Nem eu mais sabia porque não conseguia contar, mas algo me dizia que não era a hora. E eu obedecia ao meu próprio sexto sentido, mesmo sabendo que aquilo me custaria a paz do meu conturbado relacionamento.

Michel encostou-se a cadeira, relaxado. Eu o vi balançar a cabeça, algumas vezes, negando ou desacreditando em sabe-se lá o quê. Ele olhou para Bernard, talvez procurando alguma ajuda, mas não teve.

- Eu costumava achar que conhecia cada coisa sua, Maria Luíza. Cada mínima coisa sua! – Ele riu com amargura. - Eu achava que você era a pessoa mais fácil de ser lida, mas é fato que sua passagem na Alemanha mudou a sua personalidade de um jeito que não se conserta. Às vezes acho que sou mais apaixonado pela Maria Luíza da minha adolescência do que por essa Maria Luíza de agora.

O desabafo dele foi o suficiente para conseguir me fazer chorar. Não sei se era essa a sua intenção. Me fazer chorar parecia uma das formas de me arrancar a verdade que ele queria saber. Michel ficou de pé, meio cambaleante.

- Eu vou embora.

- Você está bêbado. – Bernard murmurou. – Chame um táxi. Eu levo seu carro amanhã.

Não houve resposta. Michel apenas saiu em passos cambaleantes em direção a saída.

- Leva ele para casa, Bernard.

- E você? – Ele perguntou, me olhando, preocupado. Seu dedo polegar passou por minha bochecha, limpando minhas lágrimas.

- Deixa seu carro comigo. Eu devolvo amanhã.

- Ok. – Bernard me deu as chaves. – Não leve em conta o que ele falou. Sério. Michel está bêbado! Você vai ver, no final disso tudo vocês serão tão felizes quanto um casal de filme americano. Com direito a filhos, um cachorro, e uma casinha na praia.

Ele me deu um beijo na testa e depois saiu. Eu continuei sentada, bebendo. As palavras de Michel ainda continuavam em minha mente, me lembrando que se eu não terminasse com aquilo tudo o quanto antes, eu o perderia para sempre.

A bebida misturou-se a minha dor e eu logo estava bêbada e chorando na mesa. Eu bebia para esquecer e chorava porque na verdade tudo o que eu queria era ser feliz. Apesar de duvidar se era merecedora da felicidade que eu buscava.

“Talvez você não mereça ser feliz. Por isso nada dá certo. Por isso você esconde as coisas de Michel.”

Virei mais um copo de vodka e quando olhei para o balcão, uma moça com um longo rabo de cavalo preto me encarava com um sorriso diabólico nos lábios. Eu conhecia aquele sorriso. Eu conhecia a dona daquele olhar frio e quase abusivo.

- Elena. - O nome praticamente voara da minha boca.

Fechei os olhos por alguns segundos, e quando os abri, ela não estava mais lá. Era como se aquilo fosse um teste para minha sanidade. Eu baixei a cabeça e tentei controlar a minha respiração que começava a ficar muito rápida.

“Não, não e não.” – Repeti, diversas vezes. “Eu estou vendo coisas, não era Elena que me olhava ali. Não era. Ela sumiu.”

Deixei o dinheiro na mesa e fiquei de pé. Eu precisava ir embora daquele lugar antes que a paranoia me invadisse por completo.

Cheguei a porta do carro de Bernard quando vi que um homem me olhava. Ele era gordo, muito gordo. Devia ter uns 100 kg. Barba vasta e um olhar que me amedrontou prontamente. Usava uma jaqueta de couro castanho e calça jeans rasgadas. Respirei o mais fundo que pude, torcendo para que mais uma vez minha paranoia estivesse me fazendo ver coisas.

E não era coisa da minha imaginação.

Quando percebi que ele vinha em minha direção, tentei correr, mas fui pega após tropeçar no chão. Lutei o quanto pude, mas a força dele quebrava qualquer defesa minha. Gritei por socorro, porém, ninguém veio me ajudar.

Era só eu, o vazio das ruas de São Paulo, o estranho e o fantasma do meu passado.

O homem gordo me levantou pelos cabelos, e me deu uma chave de braço, para que eu não tentasse escapar.

- Você é ótimo, Bill! – A voz feminina era de excitação. – Cuidado para não sufoca-la. Eu a quero viva. Muito viva.

Elena veio em minha direção. Ainda tinha a mesma beleza sombria da adolescência, o mesmo olhar de fria plenitude de seus atos. Meu coração batia tão forte, que eu desejei naquele momento poder infartar.

- Olá, Maria Luíza.

Antes que eu pudesse responder, recebi um soco tão forte no olho esquerdo que cai no chão. Depois fui arrastada pelos cabelos para uma esquina deserta onde levei chutes, socos e pontapés de Elena até eu perder completamente a minha consciência.

E mais uma vez fui engolida por uma escuridão onde nada mais me incomodava ou machucava. E essa parecia ser a única coisa que eu merecia.

O silêncio da morte.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 04/08/2016
Reeditado em 20/08/2023
Código do texto: T5718402
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