CONHECERAM-SE NO INTESTINO GROSSO

-Obscurantismo francês, quando floresceu a arte nonsense presente no idealismo que nasceu pelos becos mais lúgubres daquela época...

A aula de história da arte, particular, de Selma durou exatos cinquenta e dois minutos. Os seus alunos deixavam a sala contígua ao estúdio de arte da mulher, quando o marido Anésio, permanecia sentado no sofá, jornal na mão, só que mais concentrado no que a esposa ministrava às crianças até então. Selma conduziu as crianças até o portão e somente quando a última criança foi com a mãe. Ela voltou para a casa, sentou-se ao lado do marido e aconchegou a cabeça no ombro dele, ficando meio apoiada no rosto de Anésio. E o marido pôde ver como tudo é sublime.

-Minha Sél.

-Meu Nené!

-Estava pensando, quando as coisas têm que acontecer, acontecem mesmo e era para tudo acontecer.

-Tá pensando em nós?

-Sim, e como não? Você me faz um bem danado, Sél. Eu era um qualquer antes de conhecer você, eu não tinha visão para muitas coisas, e o mundo se abriu para mim. Eu era um cão antissocial.

-Rsss. Também não é pra tanto, meu Nené!

-Nos conhecemos praticamente dentro de um intestino.

-Sim. Não foi o coração que palpitava, foi o intestino.

-Realmente.

Selma e Anésio conheceram-se na porção transversal do intestino grosso. Era uma exposição de como funciona o intestino grosso, e um gigantesco túnel, semelhante a um intestino grosso, foi montado no pátio de uma universidade no interior do estado.

-Foi no duodeno ou íleo que começou o nosso amor, Sél?

-Nossa, você lembrou e eu também fico imaginando que pouca gente sabe que nosso amor começou no intestino, precisamente próxima da digestão de um porção de quiabo cozido. Mas, Anésio, acho que foi no íleo onde nos encontramos.

Anésio lembrou-se que tinham que se desviar de algum quiabo que passava deslizando por uma espécie de líquido verde. Ora vinha um pedaço de quiabo das alturas.

-O que nos levou até lá?

-Ao intestino ou ao amor, Nené?

Ele riu, depois concluiu:

-Ao intestino.

-Sabe, Nené, eu não tinha nada para fazer aquela tarde, uma amiga minha, a Gerusa, me chamou que tinha essa estrutura de um intestino montada na universidade, então fui. Mas achei muito estranho ter um programa desses, sábado à tarde, ver intestino. Mas você, Nené, o que levou você até aquela exposição de tripas à céu aberto?

A expressão do marido era terna e suave, acompanhando o clima daquela tarde, onde nuvens acumulavam-se no céu, tornando o céu chumbo-prateado. Uma brisa fresca vinha do sul da cidade, exatamente onde ficavam as estufas de verduras do seu Bepo. Anésio sentia algo de júbilo dentro de si, estar com Selma sempre foi compensador, uma sensação boa e prazerosa. Anésio, então, falou:

-Eu tinha complexo com intestino. Eu sempre achava que o meu intestino era contra mim. (Selma riu). É sim. Sei lá, meu intestino fazia eu passar vergonha diante das pessoas. Próximo a mim sempre deveria ter um banheiro, sabe. Meus amigos diziam que iam inventar um banheiro de rodinhas para mim. E as flatulências? Uma vez escapou uma flatulência perto de duas senhoras, quando eu esperava numa fila do banco, uma ainda cochichou com a outra “mas que sem educação”. Ainda tentei disfarçar me jogando no chão e gritando que podia ser um disparo de escopeta, a agência bancária estaria sendo atacada por bandidos. (Selma riu de novo). Enfim, eu odiava o meu intestino. Cheguei até a procurar terapia. Fui nessa exposição para superar o meu trauma. Foi isso.

-Certamente não esperava me encontrar?

-Sél, acho que temos que levar em conta que tudo nesse mundo é inesperado. Tinha que acontecer. Nos conhecer dentro de um intestino.

Selma lembrou das risadas quando foram “expulsos” do intestino pelo caminho “natural” das coisas. Selma e Anésio passaram pelo grande esfíncter e o grande esfíncter abria para o casal a porta da felicidade.

Leozão Maçaroca
Enviado por Leozão Maçaroca em 07/04/2017
Código do texto: T5964076
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