A vingança do contínuo

A vingança do contínuo

Lá pelos idos de 1976, trabalhava eu numa empresa distribuidora de ferro e aço de renome nacional. Chefiava o departamento de cobrança e tínhamos um Contínuo, função que hoje se chama Office Boy, o faz tudo. Entregava correspondência, fazia pagamento em banco, tirava xerox de documentos, etc. O nosso contínuo se chamava João, Sr. João. Já era de meia idade, porém bastante trabalhador, apesar dos seus poucos conhecimento das letras, como ele mesmo dizia. Prestativo, nunca se negava a fazer um favor. Pagava contas particulares, comprava remédios, sacava dinheiro em banco, até comprar algum produto que estava em promoção no comércio ele fazia. Desenrolado, nada impedia que cumprisse com sua missão. Se chegava fora do horário bancário, arranjava um jeito de entrar e pagar o título. Os gerentes já o conheciam e sempre o acolhiam. Sempre sorridente, espirituoso, nos surpreendia com suas colocações.

Na empresa tinha um contador, que tinha uma bunda avantajada e todos nós gozávamos com ele por essa característica física. Certa vez, Sr. João, observando ele passar, soltou essa: Sr. Lael o senhor tem uma bunda muito “saliente”. Todos riram e Lael não achou graça nenhuma. Tinha um outro colega que tinha hidrocele e apelidaram ele de “ovo de ema”. Ele se irritava. Então resolveu operar e quando voltou a ativa disse para Sr. João: Quero ver agora quem vai me chamar de “ovo de ema”, no que Sr. João retrucou: De ema não, agora de “codorna”, sim. Foi uma gozação só, em cima do pobre colega.

Ele também era muito inteligente. Uma vez queríamos levar uma mesa de uma sala para outra e não conseguíamos passar pela porta que era estreita. Tentamos de todo jeito e não conseguimos. Chegou Sr. João, olhou a gente com dificuldade e disse: deixe que eu passo. Pegou a mesa colocou de lado e em pé. Colocou primeiro os pés pela porta, depois empurrando devagarinho o tampo. Após passar dois pés e o tampo, fez meia volta da parte que passara e passou os outros dois pés com o resto do tampo. Todos ficaram admirados e não entenderam porque não tiveram essa idéia, afinal eram os chefes de departamentos, donde se depreendia serem os mais capazes, foi quando Sr. João soltou essa pérola que não esqueço jamais: “inteligência é a divina arte”.

Ele dizia sempre, nas horas de folga, no lanche ou após o almoço, que se tirasse na loteria, (naquele tempo não tinha mega sena nem tampouco loteria esportiva, era loteria federal mesmo, aquele bilhete que se compra e concorre a acertar a dezena de milhar), sentaria na cadeira do gerente, Dr. Márcio Jr., colocaria os pés no bureau e mandaria ele lhe servir café e água, como ele fazia atualmente. Dr. Márcio Jr., um cara jovem, bonachão, no trabalho toda disciplina, mas fora do expediente um cabra amigo de todos, botava o braço nos ombros dos funcionários, procurava saber de suas dificuldades e sempre que podia ajudava. Pois bem, em dezembro, como era de costume, havia a confraternização na empresa, como todas aquelas brincadeiras, amigo secreto, sorteio de brindes, algum cantor, bebida e comida a vontade. Lá pras tantas, Dr. Márcio Jr., convidou os chefes de departamentos e mais alguns funcionários à sua sala. Era uma sala razoavelmente grande. Tinha o bureau dele, com uma cadeira de rodízio, modelo executivo, a frente do bureau mais duas cadeiras para receber clientes e mais a frente uma mesa de reunião redonda com seis cadeiras. Mais ao canto uma mesinha com uma garrafa térmica de café, uma jarra de vidro com água gelada e uma bandeja de inox com xícaras, pires e porta copos. Ao entrarmos ele pediu que nos acomodássemos e mandou chamar Sr. João. Sr. João, bateu na porta, como de costume pediu licença para entrar. Perguntou se havia sido chamado, no que Dr. Marcio Jr disse que sim, levantou-se de sua cadeira e travou-se o seguinte diálogo: Sr. João sente aqui na minha cadeira. Sr. João retrucou, por que isso? Dr. Márcio Jr. então disse, senta homem eu não estou mandando? Ele sentou-se na pontinha da cadeira, no que Dr. Márcio Jr. repreendeu, sente direito, acomode-se. Bote os pés em cima do bureau. Ele sentou-se direito, intrigado colocou os pés na ponta do bureau, reclinando a cadeira para trás e Dr. Márcio Jr. completou: bote as mãos por trás da cabeça, relaxe. Todos nós assistindo aquela cena sem entender aonde Dr. Márcio Jr. queria chegar. Foi quando ele disse: Sr. João, peça para eu lhe servir um café. Aí todos entenderem e sorriram. Dr. Márcio Jr. em tom sério completou, vamos homem me peça um café. Pobre do Sr. João, meio que gaguejando, disse: Dr. Márcio, no que foi interrompido, Dr. Márcio não. Márcio, você agora é meu chefe. Então ele consertou: Márcio me dê um café. Um de nós ainda consertou, me dê não. Me traga. Mande mesmo. Dr. Márcio Jr. prontamente dirigiu-se a mesinha que estava no canto, pegou uma xícara, encheu com café, colocou no pires e transportou na bandeja com um frasco de adoçante e o açucareiro. Chegando perto do Sr. João, perguntou: com açúcar ou adoçante, doutor? Ninguém podia rir, o assunto era sério. Sr. João pediu com açúcar mesmo. Dr. Márcio Jr. continuou na sua frente, com a bandeja na mão esquerda, a mão direita dobrada pra trás da cintura aguardando Sr. João solver seu café para retirar a xícara. Após retirar a xícara, voltou-se para Sr. João e disse: agora mande eu lhe trazer água. Sr. João querendo acabar logo com aquilo, disse: estou sem sede. Dr. Márcio Jr. retrucou: Mande assim mesmo. Sr. João viu que não tinha jeito, olhou Dr. Márcio Jr. nos olhos e ordenou bem forte: Márcio, traga água pra mim. Um dos nossos por gaiatice ainda completou, ge-la-da. Dr Márcio Jr. repetiu todo ritual, pegou o copo, encheu d‘água, colocou na bandeja, pôs a mão direita para trás e seguiu até o bureau. Pegou o porta copos, colocou no bureau, colocou o copo com água em cima e com a bandeja na mão esquerda e a direita pra trás da cintura dobrada, aguardou até Sr. João tomar um pouco. Feito isto, Dr. Márcio Jr. disse pra ele: Sr. João, hoje eu realizei seu sonho de quando ganhasse na loteria. Não foi preciso ganhar, o senhor realizou tudo o que dizia. Sr. João, sério, levantou-se da cadeira, olhando para nós em tom acusatório, disse: Dr. Márcio, esse bando de puxa sacos que contou ao senhor o que eu faria se ganhasse na loteria esqueceram uma coisa. Uma coisinha só. Todos se entreolharam, primeiro por terem sido chamados de puxa saco e segundo que coisinha era essa que não contaram? E Sr. João, solenemente disse: VÃO TODOS TOMAR NO C., e olhando para Dr. Marcio Jr. completou: o senhor também, e retirou-se da sala.

Massilon Gomes
Enviado por Massilon Gomes em 25/03/2017
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