OS TEXTOS MAIS INTERESSANTES DA LITERATURA BRASILEIRA - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS

CAPÍTULO II

LUTA CONTRA A ANTROPOFAGIA

1. A antropofagia dos índios

2. Combate e vitória

1. - Os índios do Brasil comiam carne humana, à chegada dos Jesuítas. Ora, chegarem e iniciarem o combate à antropofagia foi tudo um, pelo obstáculo que era a conversão e pela desordem natural que tal uso significava. O homem é o fim sensível das coisas: comê-lo era fazer dele um meio . Esta inversão de fins e de meios é a condenação da antropofagia. Pouco importa o móbil com que se faz. De certo não era como regime alimentar: tinha caráter diferente, quer guerreiro, quer religioso. Alguns autores modernos, que escrevem sobre as religiões primitivas, inclinados a ver manifestações religiosas nos usos mais comuns e salientes, parecem dar, à antropofagia dos indígenas brasileiros, sentido exclusivamente religioso. De fato, a cerimônia da matança, em público terreiro, era pretexto para grandes ajuntamentos e festas com costumes, sempre idênticos no espaço e no tempo. Daqui a denominação, que alguns lhe dão, de antropofagia ritual. (1)

Mas não terá, anterior a isso, e primitivamente, origem econômica? Vivendo os índios politicamente desagregados, o vínculo nacional reduzia-se a algumas léguas de superfície: "Acada 20 ou 30 léguas" os índios "comem-se uns aos outros", diz Pero Correia (2). A necessidade de defender a caça, a pesca e os pequenos cultivos, nas reduzidas fronteiras, não seria a causa preponderante da caça ao homem, o concorrente incômodo? Cremos que sim. Depois, acesa a inimizade, com lutas e mortes mútuas, o sentimento de vingança era natural. E é esta, efetivamente, a ideia acessível, que prepondera nas observações do tempo. "Eles não se comem senão por vingança", diz Navarro. (3)

A morte cruel e afrontosa em terreiro é "como um auto público e judicial", diz Pero Rodrigues (4). A este duplo sentimento de defesa e revindita andava também unida uma terceira ideia de superioridade e honra, que revertia primariamente para quem cativasse o inimigo e secundariamente para todos os que participassem do banquete humano. (5) Se dermos crédito à anedota narrada por Vasconcelos, da velha índia que, depois de catequizada, respondeu ao Padre, solícito em lhe dar o que mais gostasse, que a tudo preferia a mãozinha tenra de algum menino tapuia (6), temos que unir, ao canibalismo indígena americano, a persuasão de que o princípio, transmitido pela ingestão da carne humana, tinha efeitos vitais, superiores aos que subministram naturalmente os outros alimentos.

Admitindo esta ideia, entramos, não há dúvida, no campo da superstição. Mas daqui à religião a distância é grande. Nisto como noutras manifestações coletivas, tudo vai, como dissemos, dos conceitos que delas se formam. Uma coisa é incontestável: que a morte ritual dos Índios do Brasil nada tem que ver com os sacrifícios a ídolos, usados por outros povos. Neste último caso, a antropofagia é evidentemente religiosa. Negando, pois, sentido propriamente religioso à antropofagia dos Índios brasileiros, concordamos em que estas cerimônias, de matar e comer o inimigo entre as tribos antropófagas do Brasil, tinham o seu quê de ritual, talvez posterior a primitiva concepção econômica e constituíam as suas verdadeiras festas nacionais. "Dê todas as honras e gostos da vida nenhum é tamanho para este gentio como matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrários e nisso 'põem sua felicidade e glória'", diz Fernão Cardim (7). Não nos poderemos deter na discussão mais demorada da ideia que lançamos do seu primitivismo econômico. Levar-nos-ia para fora do nosso assunto. Retenhamos apenas a sua existência, com todo o horror de sua prática, e vejamos como se atacou e venceu. Observemos, entretanto, que todas as cenas da vida indígena brasileira, esta tem sido a mais explorada e descrita por viajantes, historiadores e romancistas (8).

2. - A luta contra a antropofagia iniciou-se verdadeiramente em 1549. Antes de virem os Jesuítas, os colonos contemporizavam. Português e Francês houve que se tornou cúmplice dela, entregando aos chefes índios outros contrários, quer a troco de vantagens comerciais ou políticas, quer para dividir mais os índios entre si (9). Procederam de modo absolutamente oposto Nóbrega e Anchieta, quando estiveram com reféns, em Iperoig. Tratando-se, como preliminar das pazes, que se entregassem aos tamoios alguns índios tupis, os Jesuítas escreveram aos regedores das Vilas que se não desse nenhum índio para ser comido, mesmo que fosse culpado, "ainda que a nós outros nos custasse a vida" (10).

Tal proposta fazia-se num momento em que tinham realmente a vida em perigo, a mercê dos Tamoios. Mas a sua decidida recusa em ser coniventes com tais concessões, vantajosas talvez, mas imorais foi salutar e terminou por se impor a todos.

Tão firme atitude manifestou-se desde a primeira hora. Logo pregaram contra o bárbaro costume; e induziram os Índios a prometerem que ão tornariam a comer carne humana. No princípio, chegaram a arrebatar-lha das mãos. Junto à cidade da Bahia, no Monte Calvário, no próprio ano da chegada, erigiram os padres uma igreja. Os Índios trouxeram de certa guerra um contrário já morto. Dispunham-se a comê-lo, diante da Igreja e da Cruz, ali erguida. Não o consentiram os Padres, sepultando o cadáver. Descoberto pelos índios, foi preciso levar o cadáver para dentro da cidade. Alvoroçou-se a Aldeia, e na cidade houve rebate, murmurando os colonos do zelo dos Padres. A intervenção de Tomé de Sousa pôs termo ao conflito. (11)

Da cidade passou-se às Aldeias dos arredores. Nas excursões pelas Aldeias, os Padres increpavam os índios antropófagos, toda a vez que os achava em flagrante, e procuravam que se desse sepultura aos restos humanos, moqueados e guardados para comer (12). Colaboravam nesta obra de civilização os alunos do Colégio. Quando saiam a catequizar, inspecionavam as casas dos índios, e o modo como cumpriam a promessa de não comerem a carne de seus semelhantes (13).

A influência dos Jesuítas não podia, contudo, ir muito além dos seus Colégios e residências, amparados pela autoridade colonial; quando se aventuravam mais pelo interior, não era fácil destruir logo o odioso costume. A sua intervenção limitava-se a repreender o vício e, quando podiam, a batizar o cativo prestes a ser imolado, usando quase sempre de simulação (um lenço empapado em água), para que não fossem pressentidos (14). O prestígio dos Padres crescia, quando alcançavam que os Índios enterrassem à moda cristã os cativos, mortos em terreiro. E alcançavam-no às vezes (15). Mas, não contentes com isso, empregavam também os maiores esforços para impedir as mesmas mortes, tratando de resgatar os que assim estavam já em ceva, na fatal "muçurana", isto é, na corda que os prendia para a cerimônia final, antes de serem mortos e devorados.

Desta forma, resgataram na Bahia, em 1551, uma criança que recebeu, no batismo, o nome de Antônio Criminale (16); e outro menino de 7 a 8 anos, já em cordas, que foi levado para o Colégio da Bahia e "mostra ter grande habilidade". O índio, que devia matar esta pequenina vítima, estava renitente, mas enfim vendeu-o. (17)

Há ainda outros casos de resgate, mas também se achavam índios que não vendiam os seus cativos de maneira nenhuma. Falando dos Carijós do sul e da extrema facilidade com que se vendiam entre si, Jerônimo Rodrigues explica: "Já, se venderam estes quantos tapuias tomam e comem, ainda que não são escravos, pelos livrarem da morte, tiveram alguma desculpa..., mas e esta tão má gente, que pelos comer, antes vendem seus parentes; e assim, no comer carne humana; são piores que cães" (18)

Uma das prudentes preocupações dos Padres era a pouca firmeza dos índios recém-batizados. Entregues a si próprios, voltavam facilmente aos antigos hábitos antropófagos. Afonso Braz, em 1551, diferia o batismo aos Índios, pela experiência que tinha de voltarem a comer carne humana; e até "o mesmo fazem alguns que já estiveram em Portugal" (19).

Em Piratininga, os Índios também tergiversaram a princípio, incluindo o próprio Tibiriça; ainda uma vez chegaram a matar e comer um índio em Geribatiba; querendo repetir a proeza em 1555, saiu-lhes Nóbrega ao encontro, cortando os próprios Padres a corda ao Goianás cativo, que assim escapou (20). Parece que depois, mesmo quando fugiam para o sertão, embora fizessem as festas e dessem ou permitissem comer carne humana aos outros, eles próprios não a comiam (21).

Nesta altura, já se tinham passado alguns anos de luta. Durante eles, houve mais conquistas individuais ou locais do que generalização do triunfo pela repugnância do mau costume. Muitas vezes, os Índios deixavam a antropofagia, por simples respeito ou reverência para com os Padres, sem convicção profunda (22). Se os gentios vizinhos os importunavam, recaiam (23). Para ser verdadeiramente eficaz e ampla, a atividade dos Padres tinha que ser apoiada pela autoridade pública. E, neste ponto, não houve sempre igual energia. Tomé de Sousa deu alguma ajuda aos Padres, D. Duarte da Costa, pouca. Os Jesuítas ainda recorreram a ele, ao menos para os arredores da Bahia. O Governador proibiu que comessem carna humana, "sob pena de morte" (24); mas deu a ordem "de tal maneira, diz Nóbrega, que ainda que a comessem, não se fazia por isso nada, e assim comiam a furto de nós e pelas outras Aldeias ao derredor, mui livremente" (25).

Tal era a situação, quando chegou Mem de Sá. Com ele entrou-se na fase decisiva. Uma de suas primeiras medidas de governo foi a proibição absoluta da antropofagia entre os Índios em contato com os Portugueses. Quem desobedecesse seria castigado "mui asperamente" (26).

Ora o novo Governador não dava leis em vão. Um índio principal, Cururupeba, cuidou que poderia continuar como antes, e prevaricou: "esteve preso perto de um ano, e agora é o melhor e o mais sujeito que há na terra" (27). Também a guerra do Paraguaçu teve, na sua fase final, como pretexto imediato, um caso de antropofagia. Não querendo os Índios dar a satisfação devida, foi lá o próprio Mem de Sá, e o castigo foi forte, e a satisfação completa. enquanto Mem de Sá impunha assim o respeito da autoridade, os Jesuítas tomavam precauções nas suas Aldeias, para impedir que os Índios fossem às povoações dos gentios, onde ainda poderiam ser aliciados (28). E tanto, na Capitânia de São Vicente, como na de Pernambuco, faziam-se diligências para que os Capitães ou Governadores locais impusessem a mesma lei (29).

Com tão unânime decisão, a antropofagia jugulou-se. Recuou para o interior, à proporção que avançavam os Padres e os Portugueses. Este movimento civilizador foi possível e operou-se pela conjugação dos esforços do Governador e dos Jesuítas. Descreve-se assim esta fase decisiva da luta anti-antropofágica, em 1558: "Todos os índios da Bahia vão perdendo o comer carne humana, e se sabemos que alguns a têm para comer e lha mandamos pedir, a mandam, como fizeram os dias passados, e no-la trazem de mui longe para que a enterremos e queimemos, de maneira que todos tremem de medo do Governador [Mem de Sá]. o qual [medo], ainda que não basta para a vida eterna, bastará para podermos com ele edificar, e serve-nos de andaimo, até que se forme bem neles Cristo, e a caridade, que Nosso Senhor dará, lhe fará botar fora o temor humano, para que fique edifício firme e fixo. Este temor os faz hábeis para poderem ouvir a palavra de Deus; ensinam-se aos filhos; os inocentes que morrem são batizados; seus costumes se vão esquecendo e mudando-se em outros bons, e, procedendo desta maneira, ao menos, a gente mais nova, que agora há, e deles proceder, ficará uma boa cristandade" (30).

Afrânio Peixoto comente: "É o grande sinal da vitória da Missão Jesuítica: nasce o sol!". (31)

LEITE, Serafim. "História da Companhia de Jesus no Brasil".

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. Tomo II, págs. 35-41.

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NOTAS:

01. Alfred Métraux, "A Religião dos Tupinambás". 124-169.

02. CA, 98.

03. CA, 71; Pero Rodrigues. Anchieta, em "Anais", XXIX, 200.

04. Pero Rodrigues, Anchieta, em "Anais", XXIX, 264.

05. Cardim, "Tratados", 181-194.

06. Vasconcelos, "Crônica" I, 49.

07. Cardim, "Tratados", 181, 194. Nem todas as tribos do Brasil eram antropófagas, como expressamente se diz dos Miramomins. Cf. Pero Rodrigues, Anchieta, em "Anais", XXIX, 200; Anchieta, Cartas, 329; "Censura do Padre Cristiano de Gouveia à Vida de Santo Inácio do P. Ribadeneira", em Mon. Ignat., série 4, I, 740.

08. Entre as inúmeras descrições, feitas pelos Jesuítas, apraz-nos assinalar a de Fernão Cardim: "Do modo que este gentio tem acerca de matar e comer carne humana", cf. "Tratados", 181-194. Anchieta assistiu, em Iperoig, a um destes espetáculos em que a vítima foi o escravo de seu companheiro. "Os índios, como lobos, puxavam por ele com grande fúria, finalmente o levaram fora e lhe quebraram a cabeça, e junto com ele mataram outro seu contrário, os quais logo despedaçaram com grandíssimo regozijo, máxime das mulheres, as quais andavam cantando e bailando, umas lhe espetavam com paus agudos os membros cortados, outras untavam as mãos com a gordura deles e andavam untando as caras e bocas às outras, e tal havia que colhia o sangue com as mãos e o lambia, espetáculo abominável, de maneira que tiveram uma boa carniçaria com que se fartar". Anchieta, "Cartas", 216; Brasil 3 (1), 140 v; Nóbrega, CB, 100; CA, 51-52, 98-99, 173-175.

09. Cf. Nóbrega, CB, 146, 196; Francisco Soares, De algumas coisas notáveis, 379-380; M. E. Gomes de Carvalho, D. João III e os franceses (Lisboa 1909) 168. Cf. supra, Tomo I, p. 514-515, onde se vê como Pero Rodrigues dá testemunho do que nisto praticavam os Franceses, vendendo brancos e negros aos Potiguares para serem devorados.

10. Anchieta, "Cartas", 209.

11. Fund. de La Baya, 6 (81), Fray Antonio de San Róman, "Historia General", (Valladolid 1603) 695; Vasconcelos, "Crônica", I, 53. O padre Vicente Rodrigues conte este, ou outro caso igual, na sua Carta de 17 de março de 1552 (CA, 110-111) sendo ele e o P. Paiva os que arrancaram o cadáver das mãos dos índios que já o tinham chamuscado.

12. CA, 51-52, 73; Nóbrega. CB, 90, 92.

13. Vasconcelos, "Crônica", I, 117.

14. Brasil 3 (1), 89 v, 112 v; Nóbrega, CB, 109; CA, 173-175, 485.

15. Anchieta, Cartas, 153-176; Vasconcelos, Crônica, I,166; II, 87-88.

16. CA, 73. Em homenagem ao P. Antonio Criminale, primeiro mártir da Companhia de Jesus, na Índia [07 de fevereiro de 1549]. - L. Schmitt, Synopsis Hist. Soc., (Ratisbona 1914) 25.

17. Fund. de la Baya, 30-30 v (105); cf. Nóbrega, CB, 109; CA, 288, 342.

18. Relação de Jerônimo Rodrigues, Brasil 15, 94 v; cf. Nóbrega, CB, 109.

19. CA, 88; Nóbrega, CB, 106,115, 119.

20. Vasconcelos, "Crônica", I, 197; Id., Anchieta, 32-33.

21. Anchieta, "Cartas", 166 (12 de junho de 1561); cf. Ib., 73; contudo Vasconcelos, "Crônica", II, 115, diz que ainda, neste ano, os Índios de Piratininga mataram e comeram um contrário.

22. CA, 80; Nóbrega, CB, 114.

23. Nóbrega, CB, 160.

24. Nóbrega, CB, 157.

25. Nóbrega, CB, 202-203.

26. Nóbrega, CB, 203, 205; CA, 188; Vasconcelos, "Crônica", II, 50.

27. Nóbrega, CB, 182-183, 208; cf. CA, 199-200.

28. Nóbrega, CB, 160, 179.

29. CA, 288,391.

30. CA, 204; Nóbrega, CB, 182-183.

31. CA, nota 122, p. 206.