O AMADO ( Um dos melhores textos do Impostor que vive em mim).

O AMADO

~ Homenagem a Brennan Manning (O Impostor que vive em Mim)~.

Depois que William Least Heat Moon descobriu que seu emprego como

professor universitário havia terminado porque sua inscrição fora recusada, e que sua esposa, de quem estava separado, estava morando com outro homem, pôsse a caminho de explorar as "estradas tristes" — as estradas vicinais da América do Norte.

Numa manhã, enquanto tomava o café-da-manhã na cafeteria do campus no Mississipi College, em Clinton, "um estudante com cabelo à escovinha, usando pantalonas, sentou-se a mesa com uma pilha enorme de panquecas. O rapaz era metódico. Depois de orar por quase um minuto, tirou da pasta um suporte de leitura para a Bíblia, clipes para manter o livro aberto, canetas hidrográficas verde, rosa e amarela. Então, veio uma bisnaga de margarina líquida, uma garrafa com calda para panqueca embrulhada em plástico e um guardanapo de linho com aroma de limão. A coisa toda parecia com os antigos circos, em que doze homens saíam de um carro do tamanho de uma lata de lixo... Pensei que as próximas coisas que sairiam da pasta seriam uma garrafa térmica e a Arca da Aliança".

Nessa descrição, Moon oferece um vislumbre do eu verdadeiro — sem

constrangimentos, sincero, imerso na vida, absorto pelo momento presente, respirando em Deus tão naturalmente quanto um peixe n'água.

A espiritualidade não é um compartimento ou uma esfera da vida. Antes, é um estilo de vida: o processo da vida vivida com a visão da fé. A santidade reside em descobrir o eu verdadeiro, em mover-se na sua direção e viver a partir dele.

A medida que os anos passavam no monastério, Thomas Merton começou a ver que o desenvolvimento espiritual mais elevado estava em ser "comum","tornar-se plenamente homem, de uma forma que poucos seres humanos conseguem se tornar tão simples e naturalmente... à medida do que outros deveriam ser se a sociedade não os distorcesse com ganância, ambição, cobiça ou carência desesperada".

John Eagan, que morreu em 1987, era um homem comum. Professor de um colégio pouco reconhecido, em Milwaukee, passou trinta anos ministrando aos jovens dali. Nunca escreveu um livro, apareceu na televisão nem converteu as massas.

Em outras palavras, Eagan nunca conquistou uma reputação por sua

santidade. Ele comia, dormia, bebia, fazia trilha de bicicleta, perambulava pelo bosque, dava aulas e orava. Mantinha um diário, publicado logo após sua morte.

Era a história de um homem comum cuja alma era seduzida e enlevada por Jesus Cristo. Na introdução de sua obra A travaler toward the dawn, está escrito: O ponto principal do diário de John é que nós somos os maiores obstáculos para a nobreza de nossa alma — que é o significado da santidade. Nós nos julgamos servos indignos, e esse julgamento setorna uma auto profecia. Supomos que Deus nem considera nos usar, mesmo um Deus capaz de realizar milagres usando apenas lama e saliva. Assim, nossa falsa humildade acorrenta um Deus que, por outro lado, é onipotente.

Eagan, um homem imperfeito, com fraquezas evidentes e defeitos de

caráter, aprendeu que a transgressão é própria da condição humana, que devemos nos perdoar por não sermos amáveis, por sermos inconsistentes, incompetentes, irritáveis e gorduchos. Ele sabia que seus pecados não podiam afastá-lo de Deus. Todos eles foram redimidos pelo sangue de Cristo.

Arrependido, levou o eu obscuro até a cruz e ousou viver como um homem perdoado. Na jornada de Eagan, ouvem-se ecos de Merton: "Deus está pedindo a mim, ao indigno, que esqueça a minha indignidade e a de meus irmãos, para ousar ir em frente no amor que redimiu e renovou a todos nós à semelhança de Deus. E então, ao final, rir das idéias despropositadas de 'merecimento'".

Lutando para diminuir o tamanho do eu ilusório, Eagan buscou uma vida de oração contemplativa com fidelidade impiedosa. Durante seu retiro anual de oito dias, com ênfase no silêncio, a revelação do eu verdadeiro o atingiu com uma força brutal. Na manhã do sexto dia, ele recebeu a visita de seu mentor espiritual: Naquele dia, Bob falava com grande clareza, batendo na mesa com o punho: "... John, este é seu chamado, a forma como Deus está chamando você. Ore pelo aprofundamento deste amor, sim, saboreie este momento em que Deus está presente. Ceda ao contemplativo em você, renda-se a ele; solte-se, busque a Deus...".

Então, ele afirma algo que me fará ponderar durante anos; e o

faz deliberadamente. Peço que repita para que eu possa escrever.

"John, o coração disso tudo é: faça do Senhor e de seu imenso amor

por você o que constitui seu valor pessoal. Defina-se

radicalmente como o amado de Deus. O amor de Deus por você

e ser o escolhido dele constituem o seu valor. Aceite isso e deixe

que se torne a coisa mais importante da sua vida."

Discutimos o assunto. Os fundamentos de meu valor pessoal não

são posses, talentos, estima de outros, reputação... nem o renome

que traz a glória do reconhecimento de pais e filhos, o aplauso, nem

todos lhe dizendo quanto você é importante para o lugar... Agora,

permaneço ancorado em Deus, diante de quem me encontro nu;

esse Deus que me diz "Você é meu filho, o meu amado".

O eu comum é o eu incomum — o ninguém insignificante que treme no frio do inverno e transpira no calor do verão, que acorda sem ter feito as pazes com o novo dia, que se senta diante de uma pilha de panquecas, que costura no trânsito, que faz barulho no porão, que faz compras no supermercado, que capina as folhas e as ajunta num monte, que faz amor e bolas de neve, que empina pipas e ouve o barulho da chuva bater no telhado.

Enquanto o impostor deriva sua identidade de conquistas passadas e da adulação dos outros, o eu verdadeiro sustenta sua identidade na amorosidade.

Encontramos Deus nas coisas comuns da vida: não na busca da espiritualidade sublime ou do extraordinário, nem nas experiências místicas, mas simplesmente em estar presentes na vida.

Escrevendo para um intelectual e amigo íntimo, de Nova York, Henri

Nouwen afirmou: "Tudo o que quero lhe dizer é 'Você é o amado' e tudo o que espero é que possa ouvir essas palavras como se ditas a você com toda a ternura e força que o amor pode compreender em si. Meu único desejo é fazer reverberar essas palavras em cada canto de seu ser: 'Você é o amado"

. Ancorado nessa realidade, o eu verdadeiro não precisa de trombetas com surdina para anunciar sua chegada nem de um palanque espalhafatoso para prender a atenção dos outros. Damos glória a Deus simplesmente por sermos nós mesmos. Deus nos criou para estarmos unidos a ele: esse é o propósito original de nossa vida. Deus se define como amor (1Jo 4:16). Viver com a consciência de ser o amado é o eixo em torno do qual a vida cristã se desenrola. Ser o amado é nossa identidade, o centro de nossa existência. Não é apenas um pensamento arrogante, uma idéia inspiradora ou um nome entre tantos outros. É o nome pelo qual Deus nos conhece, e a forma pela qual se relaciona conosco.

Como Deus disse: "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao vencedor, dar-lhe-ei do maná escondido, bem como lhe darei uma pedrinha branca, e sobre essa pedrinha escrito um nome novo, o qual ninguém conhece, exceto aquele que o recebe" (Ap2:17).

Se eu preciso buscar uma identidade que não esteja em mim mesmo, o acúmulo de riqueza, poder e honra me fascina. Ou, então, posso encontrar meu centro de gravidade nos relacionamentos sociais. Ironicamente, a própria igreja pode afagar o impostor conferindo ou retendo honrarias, oferecendo o orgulho de uma posição baseada no desempenho e criando a ilusão de status pelo escalão e pela ordem de importância. Quando pertencer a um grupo de elite eclipsa o amor de Deus, quando tiro vida e significado de qualquer outra fonte diferente da minha condição de amado, estou morto espiritualmente. Quando Deus é relegado a segundo plano, atrás de quaisquer bugigangas ou ninharias, troquei a pérola de grande preço por fragmentos de vidro pintado. "Quem sou eu?", perguntou Merton, e respondeu: "Sou aquele que é amado por Cristo". Isso é a base do eu verdadeiro. A condição indispensável para desenvolver e manter a consciência de que somos os amados é reservar tempo a sós com Deus. Na solitude, estamos em harmonia, sem a recusa, declarada nos murmúrios, de nossa indignidade, e mergulhamos no mistério do eu verdadeiro. Nosso anseio por saber quem somos de verdade — conhecer a origem de nosso descontentamento — nunca será satisfeito até confrontarmos e aceitarmos nossa solitude. Lá, descobrimos que a verdade sobre sermos os amados é realmente legítima. Nossa identidade repousa na ternura implacável de Deus por nós, revelada em Jesus Cristo.

Nosso frenesi controlado cria a ilusão de uma existência bem ordenada. Movemo-nos de crise em crise, reagindo ao urgente e negligenciando o essencial.

Andamos continuamente em círculos. Ainda fazemos todos os gestos e

praticamos todas as ações identificadas como humanas, mas nos assemelhamos a pessoas levadas por esteiras rolantes de aeroportos. O frio na barriga se extingue. Por sermos os amados, não mais ouvimos o que Boris Pasternak chamou de "música interna". Mike Yaconelli, co-fundador da Youth Specialties, conta sobre o tempo em que, abatido e desmoralizado, arrastou-se pesadamente com sua esposa, Karla, até Toronto, Canadá, para um retiro na comunidade

L'Arche [A Arca]. Ele foi com a esperança de obter inspiração das pessoas com deficiências físicas e mentais que viviam ali, ou buscar alívio na presença e na pregação de Henri Nouwen. Em vez disso, encontrou o eu verdadeiro. Ele conta a história: Levou apenas algumas horas de silêncio antes de começar a ouvir minha alma falar. Demorou pouco até descobrir que não estava sozinho. Deus estava tentando gritar mais alto do que a barulheira da minha vida, contudo, eu não podia ouvi-lo. Mas, na calmaria e na solitude, seus sussurros gritaram de dentro da minha alma: "Michael, estou aqui. Tenho-o chamado, mas você não me escutou. Consegue me ouvir, Michael? Eu amo você. Sempre amei. Esperava que você me ouvisse dizê-lo. Mas você tem estado tão ocupado tentando provar para si mesmo que é amado, que nem me ouviu".

Eu o ouvi, e minha alma sonolenta encheu-se com a alegria do

filho pródigo. Minha alma foi despertada por um Pai amoroso que

tem procurado e esperado por mim. Finalmente aceitei minha

transgressão... Nunca rinha me acertado com isso. Deixe-me

explicar. Eu sabia que estava quebrado. Sabia que era pecador.

Sabia que decepcionava Deus continuamente, mas nunca consegui

aceitar esse meu lado. Era uma parte que me envergonhava. Sentia

continuamente a necessidade de me desculpar, de fugir da minha

fraqueza, de negar quem eu era para me concentrar em quem

deveria ser. Estava quebrado, sim, mas tentando continuamente

nunca mais me quebrar de novo — ou, pelo menos, chegar a um

lugar em que raramente estivesse quebrado.

Em L'Arche, tornou-se muito claro, para mim, que não havia

entendido completamente a fé cristã. Cheguei a perceber que Jesus

me fortalecia em minha transgressão, impotência e fraqueza. Era na

aceitação da falta de fé que Deus poderia me dar fé. Era ao acolher

minha transgressão que poderia me identificar com a transgressão

dos outros. Meu papel era identificar-me com a dor de outros, não

aliviá-la. Ministrar era compartilhar, não dominar; entender, não

teologizar; cuidar, não consertar.

O que isso tudo significa?

Não sei... e sendo bem grosseiro, esta não é a questão? Sei

apenas que em momentos específicos de nossa vida, ajustamos seu

curso. Esse foi um desses momentos, para mim. Se você olhasse o

mapa da minha vida, não perceberia nenhuma diferença notável, a

não ser por uma ligeira mudança de direção. Só posso dizer que

tudo parece diferente agora. Há uma expectativa, uma energia por

causa da presença de Deus em minha vida que nunca experimentei

antes. Só posso dizer-lhe que, pela primeira vez em minha vida,

posso ouvir Jesus sussurrar todos os dias: "Michael, eu te amo. Você

é o amado". E por alguma estranha razão, isso parece ser

suficiente. O tom inodoro desta narrativa revela o aroma de um homem sem fingimentos. Nenhuma fachada piedosa, nenhuma falsa modéstia. Algo mudou.

Numa noite de inverno em Toronto, um vaso terreno, com pés de barro pôs-se a crer em sua amorosidade. Yaconelli ainda escova os dentes, ajeita sua barba irregular, coloca a calça uma perna por vez, senta-se com avidez diante de uma grande pilha de panquecas, mas sua alma está embebida em glória. A ternura de Deus fez desmoronar as defesas que Yaconelli levantara. A esperança foi restaurada. O futuro não mais parece agourento. Levado cativo ao agora,

Yaconelli não tem espaço sobrando para a ansiedade acerca do amanhã. O impostor retornará de tempos em tempos, mas, no deserto do momento presente, Yaconelli repousa num local seguro.

Não estamos olhando para um gigante espiritual da tradição cristã, mas para um homem cristão comum que se encontrou com o Deus de pessoas comuns. O Deus que segura patifes e maltrapilhos pelos cabelos e os eleva para que se sentem entre príncipes e princesas de seu povo.

Mike YACONELLI, The back door. Uma coluna escrita pelo editor de The door, um periódico cristão bimestral que é cáustico, irreverente, satírico, muitas vezes sério, ocasionalmente superficial, freqüentemente provocativo, surpreendentemente espiritual, meu favorito, a assinatura mais divertida e, como diz o anúncio, "o presente perfeito para as mentes fechadas".

Esse milagre basta para qualquer um de nós? Ou o trovejar do "Deus amou o mundo de tal maneira" foi tão abafado pelo rugido da retórica religiosa que ficamos surdos para a promessa de que Deus tem sentimentos ternos por nós?

- O Impostor que vive em Mim -

Homenagem a Brennan Manning.

Autor: Brennan Manning.

O qual com suas obras me fez enxergar a maravilha da graça de Deus.

Davi Alves
Enviado por Davi Alves em 20/01/2017
Reeditado em 20/01/2017
Código do texto: T5887418
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