O SACI QUE MATOU O ZÉ FERRO

Era inverno em Paracambi, última estação da linha de trens da Central do Brasil, ali se encerra também a Baixada Fluminense e nessa época do ano, com temperaturas mais baixas acompanhadas de muita neblina, vinda da Serra das Araras, um setor da grande Serra do Mar.

Zé Ferro estava casado há tanto tempo que nem lembrava mais se a esposa tinha religião. Ela rezava em um oratório fechado à chave que só era aberto quando ele estava fora de casa. Mas, para que dar atenção aos pedidos da mulher, se ela era burra demais até para pedir alguma coisa que prestasse?

No almoço a gororoba era sempre feijão com arroz e uma carne ensopada. A esposa não era uma cozinheira de mão cheia. Muito ao contrário. Não jantavam e à noite, comiam coisa mais leve, era canjiquinha ou sopa de entulhos. - Só para forrar o estômago, dizia ela.

Como trabalhava como vigia noturno, Zé Ferro dormia das sete da manhã até às três da tarde, quando então almoçava, em lugar de tomar café. Fazia alguma coisa no quintal até escurecer e ouvia a novela do Gerônimo no rádio, depois a hora do Brasil e algum programa de auditório até a hora de partir para o trabalho. Uma rotina danada de chata.

Naquela noite o homem estava com fígado azedo e quando a mulher colocou a terrina de sopa na mesa ele começou a reclamar, disso e daquilo. Ela calada, só olhava para o oratório lacrado. Mordeu um pedaço de osso buco e lascou um dente. Falou mal da sopa, da mulher, do osso, do dente e até Deus levou um chega para lá. O Zé ficou furioso com o mundo.

Após jogar a sopa na cara da mulher, Zé Ferro, derrubou a cadeira no chão e se levantou da mesa, resmungando sabe-se lá o quê, foi para frente da casa de pau-a-pique pitar seu cachimbo de barro. Sentado diante do nada e debaixo do céu estrelado, o homem pensou: - Eu faria um pacto até com o capeta só para a mulher aprender a cozinhar. Pitou, pensou de novo e pitou.

Lá dentro do casebre a mulher rezava uma reza estranha. Ele achou que ela rezava para Santa Nanci. Sem dar atenção o homem ficou contando estrelas no quintal. Diante do oratório a mulher ajoelhada falava uma oração compenetrada e voltada para um tal de chefe da banda esquerda. Nem amém ela disse ao terminar.

Quando bateram nove horas da noite no sino da igreja de Imaculada Conceição, o homem juntou a espingarda de carregar pela boca, a merenda da madrugada, a garrafa de café e saiu de casa em direção a Fábrica Brasil Industrial, onde trabalhava há mais de vinte anos.

De casa seguiu pela trilha até a Estrada da Cascata, atravessou a ponte do meio no Correio de Casa, e passando pelos fundos do Cassino alcançou a portaria externa da grande indústria onde era guarda noturno.

Cada semana a escala levava a turma de guardas noturnos para uma parte da imensa propriedade. Às vezes era na portaria principal, outras na usina de força, na guarita da entrada da praça ou na mansão do dono, seu Artur Bezerra.

Naquela semana o patrão estava hospedado na casa da gerência, bem no alto do morro da entrada da Fábrica. Ao subir o guarda foi pegando aqui ou ali uma fruta madura no grande pomar que separava a rua de entrada da linda casa de tijolos aparentes. Rondar a casa, os pomares e a capela da Nossa Senhora da Conceição era sua tarefa diária na dita semana, das dez até às seis da manhã, quando seria substituído por outro vigia.

Até que não reclamava do trabalho. Primeiro porque não tinha ninguém fiscalizando suas tarefas, era só registrar o cartão de ponto no relógio, nas horas certas e locais pré-estabelecidos. Feito isso, de nenhuma outra responsabilidade Zé Ferro precisava cuidar. Em segundo lugar, a noite era agradável para trabalhar, com temperatura mais amena e o céu estrelado que sempre gostou de observar.

Nos fundos da igreja ficava um amplo jardim na parte plana, madame Bezerra gostava de plantar hortênsias, margaridas e rosas. Na parte traseira do jardim, já descendo o morro, havia outro pomar, só que de árvores grandes, como jaqueiras, mangueiras, sapotizeiros, abacateiros, tamarindeiros, um bananal e até um pé de abiu carregava todo ano, lá no fim do barranco.

Zé Ferro se dirigiu até o paiol do jardineiro, deixou os comes e bebes numa prateleira, pegou seu relógio de ponto, saiu, trancou a porta e foi girar as chaves da primeira ronda no relógio. A primeira delas ficava pendurada na porta da cozinha do casarão e lá chegando rodou a chave no relógio, marcando a passagem na hora certa.

Passando pela extensa garagem que ficava no piso inferior da mansão, foi em busca da segunda chave na porteira da descida interna, que levava o patrão por um atalho até a portaria principal da fábrica. Fez isso em todos os outros pontos pré-determinados para sua ronda.

Na lateral da igreja havia um banheiro masculino que ficava aberto para o vigilante. Terminando a primeira passagem, foi ao banheiro e para isso passou pela calçada da igreja. A luz das luminárias era bem fraca e servia somente para evitar um tombo nas escadarias ou um escorregão nas calçadas. Entrou e usou o banheiro sem problemas. Pensou ele em voz alta: - Noite calma!

Ao sair do sanitário, pegou um naco de fumo de rolo, sacou do canivete e picou uma porção de fumo para o cachimbo. Preparou o cachimbo, acendeu e caminhou até o paiol de jardinagem para fazer uma boquinha, mais cedo que o normal ele sabia, mas sem tomar a sopa naquela noite o estômago começava a roncar reclamando um pouco de alimento.

Pegou o embornal e de lá tirou as frutas colhidas, uma mexerica e duas goiabas bem cheirosas, sentou no vão da porta e com o mesmo canivete que picou o fumo, cortou as frutas. Saciado, tirou o relógio de bolso e percebeu que já era hora de começar a ronda da meia noite.

Fechou a porta e seguiu para os fundos da casa onde estava a primeira das chaves. Repetiu o gesto da ronda das vinte e duas horas e desceu até a porteira. De lá voltou pela rua calçada por seixos rolados até passar pela guarita da subida na entrada principal. Marcou a passagem no relógio de ponto e subiu o morro em direção à igreja.

Quando passou pela porta principal da igreja tomou um susto daqueles. Havia uma pessoa sentada no ressalto da coluna grega que emoldurava a alta porta de madeira. Com a luz amarelenta e fraca só dava para ver a silhueta do estranho e os dentes muitos brancos que chegavam a brilhar naquele lusco-fusco.

Passado o momento de susto se recompôs e tirou a espingarda da algibeira e reagiu a presença do invasor gritando: - Sai para a luz e mostra a cara! Ou, vai levar chumbo no lombo. O sujeito atendeu a ordem do guarda e pulou ficando frente a frente com Zé Ferro.

Quando a luz clareou o intruso o velho guarda abriu a boca e sem palavras descobriu que diante dele estava um moleque preto retinto, de uma perna só, pelado, mas com um gorro vermelho na cabeça e um cachimbo nas mãos.

Era o Saci!

E era mesmo. Pois o “coisa ruim” perguntou para o vigia: - Tem fogo aí?

Para você ainda não conhecedor da história desse perrengue do malfeito, fique sabendo que a coisa começou no Rio Grande do Sul, entre os índios de lá, que contavam uma estória para os filhos sobre um indiozinho moreno que não conseguia ficar quieto, aprontando muitas travessuras. Na tribo ele assustava as pessoas, escondia objetos e aprontava a maior bagunça. Por causa disso que os mais idosos diziam que quando procuramos alguma coisa e não encontramos, foi arte do Saci-Pererê. Nessa época ele ainda protegia as florestas, como o Curupira na Amazônia.

Conforme reza a lenda do Saci foi se espalhando pelo Brasil o índio ficou pretinho da silva, ganhou um gorro vermelho e um cachimbo, mas coitado, perdeu uma perna em uma luta de capoeira. Embora tenha gente que afirma categoricamente que o Saci nasceu sem a perna direita e sem a esquerda, ele nasceu com uma só perna no meio do virilha. Outros garantem que ele próprio cortou a perna, pois era um escavo e preferiu ser livre com uma perna que se manter na escravidão com as duas.

Daí para diante nasceram mais características para o danadinho, disseram que o gorro lhe dá poderes para sumir de um canto e aparecer em outro. Além disso, se alguém pegar o gorro dele, o Saci fica sob o domínio do ladrão.

No Nordeste brasileiro o Saci saiu das florestas e foi atazanar as casas dos pequenos sítios. Entre os nordestinos o malandrinho é responsável por prender pessoas em lugares fechados e sem chave, derrubar água da moringa, fazer uma chama de fogão a lenha se acender sozinha, entre outras coisas.

As molecagens preferidas do Saci-Pererê na Bahia vão desde queimar a comida no fogão, soprar o vento para sujar a roupa lavada no varal, assustar viajantes que passam pelas estradas com gritos e assovios, abrir a porteira e soltar o gado, dar nós nas crinas dos cavalos, entre outras traquinagens.

O Saci Pererê gosta de assustar as pessoas e de assobiar de noite. Contam as más línguas que eles nascem dos brotos de bambu, vivendo sete anos no bambuzal de onde saem para viver mais setenta e sete anos aprontando com as pessoas e com os bichos de casa. Dizem que depois disso, morrem e viram um cogumelo venenoso do tipo orelha de pau.

Um dos lugares onde tem até dia do Saci é pequena cidade paulista de São Luís do Paraitinga. Por lá é comum ver estátuas do Saci na frente de biroscas e quiosques de venda dos derivados de milho nas margens da rodovia. Todo dia 31 de outubro a cidade festeja a “busca pelo Saci”. Ainda não acharam um, entretanto dizem que vários já foram presos na garrafa e acabaram fugindo por distração do dono. Os bambuzais de lá são evitados pelas crianças, os assobios não deixam dúvidas que tem alguma coisa naquelas touceiras.

Pode parecer mito, mas a coisa é séria tanto que já existe lei para garantir a comemoração do Saci no país, sem contar na existência de agremiações como a Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci) que faz a busca sistemática do negrinho das trapaças Brasil a fora. Para quem já deu de cara com o Saci e viveu para contar fala-se que um dos hábitos dele é pedir fogo aos viajantes para acender seu pito. Falam até que o perneta tem uma das mãos furadas de tanto carregar as brasas do cachimbo. Isso ainda deverá ser confirmado quando alguém fotografar o tinhoso.

Na página da Internet da agremiação de caça ao Saci tem muitas informações sobre ele. Uma coisa que vale a pena saber é que dentro de cada redemoinho de vento existe um saci.

Para capturá-lo é necessário ter muita paciência e uma sorte danada de grande. Pé-ante-pé chegue perto do redemoinho e jogue uma peneira daquelas trançadas de bambu. Não levante a peneira de uma vez, pois ele foge. Com cuidado uma garrafa vazia de cachaça embaixo da peneira. Assim que o Saci-Pererê entrar na garrafa, levante a peneira e enfie uma rolha na boca da garrafa. Acho bom não se esquecer de desenhar na rolha uma pequena cruz.

Mas, voltando à aparição diante da igreja da Imaculada Conceição. O guarda Zé Ferro não ia se intimidar diante do tição do inferno e respondeu à desafiadora pergunta se tinha fogo com uma ameaça ao coisa ruim: - Tenho sim, tá no cano da minha espingarda.

O Saci nem pestanejou, botou o cachimbo na boca e mandou o vigilante acender seu pito. O homem apontou a arma no tabaqueiro do moleque da boina e tascou o dedo no gatilho. A língua de fogo se espalhou pela cara do Saci e ele engoliu a lavareda em seco. A fumaça ainda não havia baixado e o filho do cão agradeceu dizendo: - Fumo assim é bom porque forte. Mas, você quis me machucar e agora eu vou danar a tua vida velho malvado.

Sem saber como o Saci conseguiu, Zé Ferro tinha agora o moleque montado em seu cangote. Tentou recarregar a espingarda, mas havia deixado o embornal com a pólvora e os balins no paiol. Tentou também tirar o malvado garoto de cima e não conseguiu, o Saci agarrou em seu pescoço e colocando o peso para trás pressionava o pescoço do homem que começou a se sentir enforcado pelo garupeiro.

Arriscou uma tática que sempre usou na hora das brigas, mantendo a calma e perguntou ao fumo do cão: - O que você quer? A resposta foi surpreendente: - Acabar com a tua raça. O homem tremeu de cima a baixo e bateu com o Saci na parede da igreja, na grossa porta de madeira e nada do tinhoso cair.

Já começando a perder o fôlego o mulo do cramunhão matutou ainda sem perder a calma: - De onde veio essa coisa ruim? O que Zé Ferro nunca poderia imaginar é que o Saci estava ali a pedido de sua esposa que não aguentava mais apanhar dele e ser tachada de burra a toda hora.

Com a falta de ar nos pulmões o desespero começou a bater no Zé Ferro que do nada começou a rezar, sendo brutalmente interrompido pelas tapas em sua cara, dados pelo moleque do capiroto. O Saci foi logo avisando: - Só saio de cima de você depois que você der sete voltas em torno da igreja.

Surpreso com a exigência, sem perder tempo para responder começou a caminhada exigida. Ao final da primeira volta o peso do Saci tinha dobrado. Quando começou a terceira o moleque já pesava quatro vezes mais e na sexta o peso no lombo era tanto que Zé Ferro arfava feito um burro puxando uma pesada carroça ladeira acima.

Não deu outra, ao começar a sétima volta o velho coração não suportou tamanha carga e enfartou. Despencando no chão viscoso de limo esverdeado, o guarda olhou para o céu e viu os dentes do filho do maldito brilhando em uma gargalhada que até as corujas ouviram. A dor imensa no peito, os suores frios na testa e o céu estrelado foram às últimas sensações do vigia, em poucos minutos morria Zé Ferro, de tanto fazer força para carregar o Saci nos ombros.

Pela manhã, Francisco o guarda que ia render Zé Ferro encontrou o corpo gelado com olhos bem abertos e olhar fixo no céu. Correu até a casa grande e batendo forte na porta acordou o patrão com a má notícia. O motorista foi acordado e de carro foi buscar a força pública para cuidar do assunto.

Dois bate-paus foram trazidos da subdelegacia e se encarregaram da investigação, afinal o homem havia disparado a espingarda e não acertou em coisa nenhuma, nem gota de sangue acharam por ali. Sem testemunhas para inquirir, os homens da lei decidiram chamar o doutor Carlos, médico do ambulatório da fábrica, para dar o atestado de óbito para o defunto Zé Ferro.

Uma vez encerrada a investigação e dada à causa da morte como ataque do coração, buscaram o caminhão do seu Ademar para levar o corpo dali. Na mesma tarde o defunto pode ser velado em sua tosca casa em um caixão de cedro presenteado pelo seu Artur, o dono da fábrica.

Lá pela hora da Ave Maria alguém ligou o rádio rabo quente e os presentes ouviram o Alziro Zarur rezar uma oração pelos que se foram. Coincidência, pura coincidência. A viúva serviu um prato de sopa de entulho para cada alma viva, abrindo uma cachaça de rolha que Zé Ferro guardou a vida toda para brindar a chegada de um filho que não veio.

Uns poucos amigos passaram a noite no velório. A viúva até chorou, mas de novo se dirigiu ao oratório lacrado e baixinho rezou uma reza estranha. Dessa vez agradecendo a graça alcançada. As pessoas em volta achavam que era para Santa Laci, mas de santo a reza nada tinha.

Seu Chico da Venda, homem de olho perfeito que tudo vê na pequena Paracambi, garante para todo mundo que no velório viu a viúva abrir o oratório e lá estava um capuz vermelho e mais nada.