Crítica tentou domesticar 'Grande Sertão: Veredas', diz Silviano Santiago

Lá vem o trenzinho caipira da literatura brasileira apitando e soltando fuligem. De repente, desaba um pedregulho nos trilhos, quebra tudo.

É essa a metáfora que Silviano Santiago, um dos principais críticos literários do país, usa para falar do surgimento de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, nas letras nacionais, em 1956. O sertão rosiano é o objeto de seu novo livro, "Genealogia da Ferocidade".

Em entrevista à Folha, Santiago diz que a crítica tentou "domesticar" "Grande Sertão" e não se deu conta da crítica que ele faz ao desenvolvimentismo do país.

Folha - Que tipo de domesticação é essa que você aponta na crítica literária sobre o livro?

Silviano Santiago - A crítica se viu diante do dilema complicado, porque é um livro de leitura áspera. A revista "Leitura" publicou um artigo que trazia entrevistas com escritores que não tinham conseguido lê-lo [Ferreira Gullar disse: "O livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os linguistas"].

A crítica assumiu sua função tradicional, de mediar a leitura para o leitor comum.

O sr. atribui também a Antonio Candido tal domesticação.

Ele, o mestre de todos nós, teve a ideia extraordinária de comparar o livro a "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Essa comparação serve para dar um olhar histórico a um romance que, na verdade, não se apoia na história.

Imediatamente, o romance se transforma numa nova representação dos problemas clássicos da República Velha, com os jagunços e coronéis. No entanto, você vê que no livro não há nenhuma data. Ele vai dando uma conotação um pouquinho perigosa, que é o conflito entre o progresso e a barbárie.

Por que essa comparação não faria sentido?

A condição de enclave torna "Grande Sertão" uma alegoria da nação toda vez que ela passa por um movimento desenvolvimentista sem se preocupar com as questões humanas e sociais [O romance de Rosa sai no mesmo ano em que JK assume o poder].

A comparação com "Os Sertões" foi muito útil, mas ela foi escondendo o que é o livro. Vejo dois elementos: um é a ferocidade, que é responsável pelo comportamento dos personagens dentro daquele enclave; outro, a irascibilidade, que seria toda a tentativa de botar ordem nessa anarquia.

Então, o livro é uma crítica ao desenvolvimentismo?

A mais radical já feita.

Mas só no plano político?

Também no plano estético, uma crítica aos perigos de você representar o desenvolvimentismo pelos valores que ele faz circular naquele momento. Daí vem a insatisfação da maioria dos leitores.

O livro é publicado na mesma época em que a Bienal de Arte de São Paulo premia o abstracionismo geométrico. Depois, vêm João Cabral de Melo Neto, que usa 20 palavras para escrever [risos], e os concretos. Mais adiante, a bossa nova. Toda essa ideia de que menos é mais.

Todos adotam a linguagem racional do desenvolvimentismo. No fundo, participam literária e politicamente dele.

Por que você diz que o uso que Guimarães Rosa faz da pontuação é aleatório?

Se você for seguir a pontuação racionalmente, você não sai da frase. Comparo com a pintura de Jackson Pollock, você vai distribuindo [a pontuação] pela página. Guimarães Rosa ordenou a fala do jagunço da maneira que ela poderia ser ordenada, que é pelo acaso.

Ricardo Borges (Folha- 25/03/2017)